Fernanda Torres diz que se tornou uma “atriz cínica” por causa de Bouvard e Pécuchet. O “misto de realismo e sarcasmo” da derradeira obra de Gustave Flaubert acabou com suas ilusões sobre a ridícula “besta-fera chamada homem.”
Jorge Oakim, o editor da Intrínseca, leu O Apanhador no Campo de Centeio quando passava pelas agruras da adolescência, tal como Holden Caulfield, o protagonista do romance de J.D. Salinger. O impacto do livro não se limitou àquela idade difícil e confusa, mas se estendeu por toda a sua vida.
Já a vida de Lilia Schwarcz se divide em duas partes: antes e depois de ler Amada, o romance de Toni Morrison que, segundo a historiadora e antropóloga, causou um abalo na sua concepção da História.
A leitura nos marca – cada um de um jeito – e as múltiplas formas como isso acontece estão em O Livro que Mudou a Minha Vida (Nova Fronteira; 240 páginas), uma instigante coletânea de ensaios na qual 38 figuras públicas falam sobre o assunto.
Celebração apaixonada da leitura, a obra é organizada pelo advogado José Roberto de Castro Neves, professor de Direito Civil e sensível leitor de Shakespeare. O livro que Castro Neves elege como fundamental, no entanto, não é uma peça do Bardo, e sim a trilogia O Senhor dos Anéis, o clássico da fantasia de J.R.R. Tolkien que o encantou na adolescência.
Talvez por ter sido concebida por um homem do Direito, a coletânea inclui vários figurões do mundo jurídico, incluindo dois ministros do STF – Cármen Lúcia, cujo livro marcante é o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, e Luís Roberto Barroso, que indica O Eu Profundo e Outros Eus, antologia da poesia de Fernando Pessoa (e de seus heterônimos).
O livro inclui também depoimentos de escritores, críticos, músicos e jornalistas – uma fértil variedade de inteligências que compõem um painel de escolhas ecléticas.
Apenas duas obras foram escolhidas por mais de um participante: O Senhor dos Anéis também encantou o autor de novelas João Emanuel Carneiro, e Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, hipnotizou tanto o bibliófilo Pedro Corrêa do Lago quanto a advogada Vivianne Falcão (curiosidade: Corrêa do Lago, um notório colecionador de manuscritos, presenteou Vivianne com uma carta original de Proust).
Entre as escolhas dos 38 autores, há ensaios, memórias, livros de história, filosofia e ciências sociais, e até um título bastante especializado – Price Theory and its Uses, de Donald Watson – escolha de Joaquim Falcão, o advogado e membro da Academia Brasileira de Letras que estudou a obra em uma disciplina de direito e economia em Harvard.
O que predomina, no entanto, são mesmo os gêneros literários, sobretudo a poesia e o romance. Só uma peça teatral figura na coletânea: Antígona, de Sófocles, escolhida pela jornalista e escritora Rosiska Darcy de Oliveira. Para desalento de Borges, Maupassant e Tchékhov, o conto está ausente da seleção.
Ou talvez não: As Cidades Invisíveis, livro híbrido de Italo Calvino, quase pode ser considerado uma coletânea de contos. Nessa fantasia histórica, o viajante italiano Marco Polo, em conversas com Kublai Khan, descreve as cidades do vasto império mongol que Kublai, senhor de domínios inabarcáveis, não teve a oportunidade de conhecer – e as descrições dessas cidades fantásticas podem ser lidas individualmente como contos.
As Cidades Invisíveis é o livro que mudou a vida de Miguel Pinto Guimarães, o arquiteto cujo texto é um dos melhores da coletânea. Antes de examinar em detalhe a obra de Calvino, Miguel percorre alguns dos lugares mais impressionantes já criados pela imaginação humana, do inferno de Dante à Metrópolis onde o Super-Homem vive disfarçado como o jornalista Clark Kent.
Miguel explora assim uma qualidade essencial dos grandes livros: eles nunca se encerram em si mesmos, conduzindo o leitor para outras obras. O mesmo princípio orienta o texto de Margareth Dalcomo, a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz que é fascinada por A Montanha Mágica de Thomas Mann. A história que se desenrola em um sanatório de Davos permite que a médica discorra sobre a tuberculose – e também se debruce sobre outros autores que sofreram da doença, como Manuel Bandeira, Roland Barthes e Nelson Rodrigues.
Outros autores preferiram explorar a relação do livro com o momento da vida em que o leram. Marcelo Madureira, o ex-Casseta & Planeta, usa O Manifesto Comunista para falar de sua militância no PCB em meados dos anos 1970 – e de sua evolução até concluir que não era, afinal, um comunista, mas um social-democrata.
Numa outra trajetória – rumo ao liberalismo – o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, apoiou-se em 1984, o romance distópico de George Orwell sobre uma Inglaterra dominada por um totalitarismo de feição stalinista. O livro ensinou ao economista em formação que, na política, a decepção é inevitável, e que “o paradigma das revoluções era um açougue e uma vigarice.”
A maioria dos autores optaram por obras que encontraram na juventude. “Não é impossível encontrar o livro de uma vida na idade adulta, embora seja improvável,” pondera o jornalista Fabio Altman em seu texto sobre Cartas a um Jovem Escritor, a reunião da correspondência de Mário de Andrade com um então jovem aspirante a escritor, Fernando Sabino – cujo romance O Encontro Marcado mudou a vida do também jornalista Merval Pereira.
Decerto se encontrarão livros transformadores em muitas fases da vida. Mas aquele livro singular que muda nossa trajetória é aquele que nos converte em leitores.