Nos próximos 4 anos os EUA terão um experimento econômico interessante, com uma agenda grande de choques já pré-contratados que poderão ser parcialmente compensados por alguns fatores, mas dificilmente evitados.

O que é praticamente certo: a) aumento de tarifas de importação de produtos da China e do resto do mundo, esse em magnitude menor; b) maior restrição à imigração nos EUA, mais deportação de ilegais; c) extensão dos cortes de impostos de Trump I; d) novo corte de imposto, em magnitude inferior; e) desregulação. 

Enquanto os dois primeiros choques são claramente negativos sobre a economia, os demais são positivos.

Dos negativos, é evidente que a imposição de tarifas levará a um custo adicional sobre os insumos (não apenas o custo, mas a própria disponibilidade será afetada).

Trata-se de um típico choque de oferta negativo, menor oferta e preços mais altos, que devem se fazer sentir nos índices de inflação. Pode-se, no entanto, interpretar esse choque como uma mudança de preços relativos, com efeitos na inflação, mas de maneira apenas temporária e sem necessariamente contaminar expectativas ou a própria inflação futura.

Do ponto de vista da política monetária, seria um choque “menos importante”. Claro que tudo dependerá da magnitude da elevação das tarifas e qual o grau de retaliação dos parceiros. 

Já seria relevante se parasse por aí – só que não. A restrição sobre imigração e a deportação “em massa” acentuaria o choque de oferta, mas com uma característica distinta: tendem a ser bem mais duradouros. 

Que a economia americana vem de um período extraordinário não resta dúvidas. Que parte desse excepcionalismo reside na atração de mão de obra do mundo todo, também é fato, e que a política fiscal ultra expansionista gerou uma aceleração da demanda que só pôde ser equacionada por volumes crescentes de trabalhadores imigrantes, sem os quais teríamos tido problemas de inflação mais sérios.

A soma dos dois choques, na intensidade em que a propaganda da campanha eleitoral prometeu, levaria a um problema bem mais profundo de aumento de salários, redução de margens de lucro, necessidade de repasses para preços, inflação, acompanhada de queda de atividade. Evidentemente que os doadores de campanha republicanos terão reserva sobre a iniciativa, e haveria pressão doméstica e externa para moderação. Há incentivo por uma negociação intensa com os parceiros com vistas a extrair benefícios para a economia americana de maneira a evitar ou diminuir as consequências negativas.

Por outro lado, os demais choques seriam positivos: o corte de impostos de Trump I vence ao final de 2025. Trump prometeu renová-lo, o que parece provável com a nova composição do Congresso. É até provável que algum corte de imposto adicional venha a ser implementado.

Para as empresas, havia preocupação sobre qual seria a base tributária caso Harris fosse eleita. Diante do quadro eleitoral binário, algum investimento que deixou de ser feito no período pode agora ser retomado.

Para o investidor de ações, uma grande preocupação deixou de existir. Corte de regulação também deveria diminuir custos, reduzir barreiras, e resultar em energia mais barata e mais dinamismo na atividade. No final, os EUA permanecerão sendo o país mais dinâmico, onde a inovação tecnológica e competição são brutais, e o novo é recompensado e substitui o velho rapidamente. 

É claro que setores distintos serão afetados de maneira distinta pelos choques, mas uma conclusão parece se manter: a inovação tecnológica deverá se tornar ainda mais crucial para as empresas, como maneira de poupar mão de obra, aumentar a produtividade e a lucratividade. 

Tomando como premissa que esses choques serão negociados e racionalizados, o efeito sobre a economia tenderia mesmo a ser inflacionário, mas menos intenso e permanente.

Com isso, a resposta de política monetária poderá ser cautelosa, e o Fed deveria seguir cortando a taxa de juros no futuro próximo, mas chegando ao fim do ciclo com taxas de juros mais altas do que se poderia imaginar na ausência dos choques.

Mais um argumento para que o dólar siga forte em relação às demais moedas do mundo. O mercado que hoje já desconta juros e dólar mais altos no longo prazo, passará a ver que a bonança de equities nos EUA seguirá por mais 4 anos, sem preocupação sobre aumento de imposto ou piora na regulação. As empresas americanas seguirão sendo as vencedoras globais, mesmo que eventualmente impactadas por algum choque no caminho. Qualquer queda deve ser vista como ponto de entrada. 

Para o resto do mundo, o choque seria praticamente o inverso. A imposição de tarifas faria com que os demais países, em particular os grandes centros industriais, passassem a ter excesso de oferta de bens e insumos, antes importados pelos EUA. É um equilíbrio deflacionista.

A desvalorização das moedas desses países poderia diminuir o efeito das tarifas, com algum efeito inflacionário, mas a atividade econômica acabaria por permanecer mais fraca, reforçando um equilíbrio mais deflacionário. China e Alemanha parecem os elos mais fracos nessa cadeira.

Ambos já vivenciam problemas econômicos e deverão ter ainda mais necessidade de mudarem o jogo, tentando estimular a demanda doméstica, tanto por meio de taxas de juros mais baixas quanto por um fiscal mais expansionista.

Na China, a deficiência de demanda e problemas imobiliários deixaram um rastro de queda de crescimento e baixa confiança. A política econômica implementada ao longo da última década cobra seu preço, e o país se vê numa sinuca de bico, com excesso de alavancagem, baixa confiança, pouca demanda doméstica, e o único setor dinâmico (que se beneficiou de maneira relevante durante a pandemia), o industrial-exportador, agora toma uma paulada. O governo vem tomando medidas a conta-gotas para estimular a demanda, e seu pior pesadelo foi eleito. Não restará alternativa senão pisar no acelerador fiscal e da dívida, estimular a atividade e o setor imobiliário para evitar uma nova rodada de piora, a um custo de mais vulnerabilidade futura. 

E para o Brasil? Nunca fomos adeptos do livre comércio, nunca nos integramos às cadeias globais de valor, e nesse sentido somos menos vulneráveis às restrições de tarifas americanas diretamente.

Antes de celebrar, convém reconhecer que o resultado foi um enorme fracasso: somos um país que assiste à estagnação da produtividade do trabalho por décadas. Num ambiente de menor crescimento global, preços de commodities mais baixos, dólar forte e juros americanos mais altos, parece mesmo que teremos que focar nos nossos problemas para evitar uma nova rodada de piora econômica.

Os problemas são os velhos conhecidos, sobre os quais temos enorme dificuldade de avançar: um gasto público que não cabe no PIB e segue crescendo, financiado com aumento da dívida.

Será que um cenário externo mais desafiador nos fará finalmente contemplar soluções para o problema fiscal recorrente? Ou será que será apenas mais uma desculpa para o nosso próximo fracasso? Neste caso, a taxa de juros permanecerá elevada, inviabilizando o setor privado e o futuro. 

Daniel Leichsenring é economista.