Javier Milei vivia seu melhor momento, desfrutando de um aumento da credibilidade externa e entregando superávit fiscal, retomada do crescimento, queda na inflação e diminuição da pobreza na Argentina.

Mas se enfiou em uma enrascada gigantesca por ter promovido uma nova criptomoeda que pode não ter passado de um esquema fraudulento para saquear investidores incautos.

O presidente argentino agora pode ser alvo de investigações criminais até mesmo no exterior, e enfrenta ameaças de um processo de impeachment.

Milei se retratou e retirou o seu apoio à nova moeda. Mas terá de esclarecer suas ligações – e a de assessores diretos – com os promotores da possível fraude.

A moeda em questão é a $Libra, que, se não era, acabou se transformando em uma meme coin – ou seja, uma moeda digital altamente especulativa criada para explorar a popularidade de celebridades, memes ou tendências nas redes sociais e sem nenhum fim específico.

Recentemente, por exemplo, surgiu a $Trump, com o apoio – pasmem – do próprio Presidente americano, ainda que pouco antes de haver assumido a Casa Branca.

boopo javier milei

À parte a questão ética e mesmo criminal de chefes de Estado chancelando investimentos em ativos financeiros, na Argentina a história foi um pouco diferente.

Na noite de sexta-feira, horas depois do fechamento do mercado, Milei fez postagens no X e no Instagram com o seguinte texto:

“A Argentina Liberal cresce!!! Este projeto privado vai se dedicar a incentivar o crescimento da economia argentina, financiando pequenas empresas e empreendimentos argentinos. O mundo quer viver na Argentina.”

Na mesma mensagem, colocou o link do projeto: vivalalibertadproject.com. Além disso, incluiu o código do contrato da moeda digital e o nome dela, $LIBRA.

Ao final do post, escreveu o seu bordão de sempre: “VIVA LA LIBERTAD CARAJO…!!!”

A viralização foi instantânea. A cotação da token disparou 1.300% e atingiu US$ 4,98 em pouco mais de uma hora. A capitalização total da nova moeda bateu US$ 4,5 bilhões – acima da maior parte das empresas listadas na B3.

Cinco horas mais tarde, já na madrugada de sábado, Milei apagou a publicação de suas redes e fez uma nova postagem:

“Há algumas horas publiquei um tuíte, como tantas outras infinitas vezes, apoiando um suposto empreendimento privado com o qual obviamente não tenho nenhum vínculo. Não estava informado dos detalhes do projeto e logo que fui informado decidi não seguir divulgando (por isso apaguei o tuíte). Às ratas imundas da casta política que querem aproveitar esta situação para provocar dano, quero dizer que todos os dias confirmam quão rasteiros são os políticos e aumentam nossa convicção de tirarmos (do poder) com chutes no traseiro.”

O estrago, no entanto, já estava feito. E como.

A moeda desabou. Foi reduzida praticamente a pó. Caiu do pico de quase US$ 5 na sexta-feira para uma mínima de apenas US$ 0,13. A moeda se recuperou hoje, mas continua abaixo de US$ 1.

Até o momento, estima-se que 44 mil pessoas tenham comprado a moeda. Os insiders e investidores que venderam posições antes de a moeda derreter lucraram cerca de US$ 100 milhões.

“Foi feio o que aconteceu. É grave porque, do lado do Milei, ou foi ingênuo ou não foi nada cuidadoso,” Fernando Ulrich, sócio da Liberta Investimentos, disse ao Brazil Journal. “Não sai nada bom disso. Ao tentar se distanciar do projeto, ele trouxe ainda mais confusão e dúvidas. Poderia ter dito que era um projeto bem-intencionado mas que deu errado.”

Advogados de investidores lesados já entraram com ações e acusam Milei de ter promovido o investimento fraudulento.

A suspeita é ter se tratado de um golpe que no mundo cripto é conhecido pela gíria rug pull – literalmente, ‘puxar o tapete’. Alguém cria uma moeda inspirada em uma ‘narrativa’ – tipo ‘Vila la libertad carajo!’ – atraindo investidores incautos. Logo na sequência, os desenvolvedores caem fora, embolsando o lucro. 

“No mundo sem regulamentação das das criptos, isso acontece a todo momento,” disse Isac Honorato, sócio e CEO da plataforma Cointimes. “São investidores atraídos pela possibilidade de enriquecer rapidamente. Já vimos isso com a memecoin do Trump e no caso de ativos promovidos por celebridades.”

Para Honorato, não dá para saber se a Libra$ tinha algum propósito e era ligada a algum projeto mais amplo de fato. “Mas se não era uma memecoin, acabou se transformando em uma grande piada.”

Piada no mau sentido.

A comunidade cripto vinha acompanhando a $Libra antes do ‘endosso’ de Milei. Quem segue o mercado de perto tinha dúvidas sobre a viabilidade do token.

Saltava aos olhos de quem entende do assunto o fato de que mais de 85% dos ativos estavam nas mãos dos desenvolvedores e de algumas outras poucas carteiras, como mostravam os dados disponíveis na blockchain, o banco de dados digital com o registro das transações. A concentração tira liquidez, facilita ‘fabricar’ uma valorização e costuma ser sinal de um golpe em gestação.

Segundo Beto Fernandes, analista da Foxbit, o caso da $Libra é emblemático porque mostra como “o mercado ainda acaba escorregando na hora de fazer uma pesquisa mais aprofundada antes de investir – e isso vale tanto para o mercado cripto quanto o acionário.”

“É óbvio que quando alguém influente, como o presidente de um país, faz ‘propaganda’ de algum ativo, isso tem um peso e influência sobre a percepção do investidor,” disse Beto. “Essa não deveria ser a regra. A melhor forma de evitar este tipo de situação é, de fato, se debruçar sobre o ativo e avaliar se ele tem um potencial de fato.”

No caso argentino, o ‘projeto’ parecia totalmente em sintonia com o discurso libertário de Milei, um economista abertamente favorável à concorrência entre moedas e defensor da tokenização de ativos.

Milei reagiu ordenando uma investigação criminal do caso, que poderá esclarecer se algum assessor seu tinha ligação com os desenvolvedores da $LIBRA.

Em outubro passado, durante o evento Tech Forum, Milei teve um encontro com Julian Peh, o CEO da KIP Network, a desenvolvedora da plataforma da $Libra. À época, o empresário postou foto ao lado de Milei e escreveu que “temos algo grande sendo preparado para a Argentina e a América Latina.”

Até aí, nada demais. Mas Hayden Mark Davis, dono da Kelsen Ventures e um dos criadores da $Libra, disse no domingo que trabalhou como assessor de Milei em temas envolvendo a tokenização e relatou que contava com o respaldo do presidente e integrantes do Governo.

“Apesar dos compromissos anteriores, Milei e sua equipe mudaram inesperadamente de posição, retirando seu apoio e excluindo todas as postagens anteriores nas mídias sociais,” disse Davis.

Davis negou veementemente que houve fraude. O projeto existia de fato, não era um golpe do tipo pump and dump.

Em uma nota oficial, a Casa Rosada disse que Milei teve de fato uma reunião com representantes da KIP e foi discutido o projeto chamado Viva la Libertad. Confirmou ainda o encontro com Davis em que se falou sobre a infraestrutura digital do projeto, mas o empresário “não tem nem nunca teve vínculos com o Governo.”

A Presidência disse que tomou a decisão de criar uma unidade de investigação para apurar crimes de lavagem de dinheiro e fraudes financeiras.

Paralelamente ao caso, existe a suspeita de que pessoas tenham se aproveitado da proximidade com Milei para ‘vender’ acesso ao presidente argentino.

O bilionário americano Charles Hoskinson, cofundador das criptomoedas Etherum e Cardano, disse ontem que, durante o Tech Forum em outubro, pessoas lhe pediram dinheiro para agendar um encontro com Milei.

Hoskinson relatou o caso em uma transmissão no X. Ele contou que rejeitou a proposta, dizendo que isso violaria o Foreign Corrupt Practices Act, a lei americana de combate ao pagamento de propinas no exterior que Donald Trump acaba de suspender.

A história ainda deve render – no campo criminal e no político. A oposição peronista ganhou de bandeja munição para atacar o presidente, e há políticos articulando um processo de impeachment.

“Nunca se viu algo semelhante,” tuitou a ex-presidente Cristina Kirchner, dizendo que Milei passou de “Hayek para Ponzi.”

“Com sua conta oficial do X, promoveu uma criptomoeda privada, criada sabe lá por quem,” escreveu. “Milhares confiaram em você.”

A Justiça Federal já recebeu mais de 100 pedidos de abertura de processo por parte de pessoas que teriam sido lesadas, e pelo menos um escritório de advogados já apresentou denúncia de fraude a autoridades americanas.

Em dia de feriado no mercado dos EUA, o índice Merval da Bolsa de Buenos Aires tombou quase 6% por causa do contágio político do caso $Libra. Os títulos soberanos do país caíram 3%.