“Um curto período de comportamento violento” é a definição do dicionário Webster para rampage.

E é irônico que uma palavra em inglês tão difícil de traduzir batize um produto que mostra que o conglomerado Stellantis entende o consumidor brasileiro melhor do que todas as suas concorrentes diretas, as ditas montadoras “generalistas” — leia-se, principalmente, Volkswagen e General Motors, suas maiores rivais no Brasil.

Apresentada com pompa e circunstância em um evento acontecendo simultaneamente nos enormes galpões do espaço ARCA, na zona oeste de São Paulo, e no Autódromo de Interlagos, na zona sul da capital, a nova picape RAM Rampage pega a conhecidíssima plataforma Small Wide, a mesma que serve de base para Fiat Toro e os Jeeps Renegade, Compass e Commander, e a leva ao limite possível de suas dimensões: 5,02 m de comprimento, criando o que é, na prática, uma “Torona” de luxo.

Os preços começam em R$ 239.990 para a versão de entrada — a Rebel com o conhecidíssimo motor 2.0 turbodiesel de 170 cv que equipa Toro e Compass há anos por aqui — e chegam até R$ 269.990 pela versão de topo R/T, com visual esportivo condizente com a grande novidade trazida pela RAMzinha, o novo motor a gasolina 2.0 turbo de 272 cv, batizado de Hurricane 4.

A Rampage marca uma série de “primeiros”: a primeira RAM fabricada no Brasil, a primeira picape compacta da marca americana e o primeiro veículo fabricado no polo de Goiana (PE) a (muito provavelmente) ser exportado para os EUA — um fato cuja significância ajuda a explicar o “encontro de presidentes” acontecido na cerimônia de início de produção da Rampage, que contou com as presenças de Lula e do head da Stellantis para a América do Sul, o italiano Antonio Filosa.

A nacionalidade de Filosa não é coincidência: caso você seja um neófito no mundo dos carros, a Stellantis é o conglomerado nascido da fusão em 2021 de outros dois conglomerados, FCA (Fiat Chrysler Automobiles) e PSA (Peugeot-Citroën).

O resultado é o que o próprio marketing da Stellantis batizou de uma “House of Brands”, com 14 marcas sob o mesmo guarda-chuva: Fiat, Abarth, Alfa Romeo, Lancia e Maserati pelo ramo italiano de origem Fiat; Chrysler, Dodge, Jeep e RAM pelo galho Chrysler americano; e Peugeot, Citroën, DS, Opel e Vauxhall pelo lado francês dessa “Grande Família”.

Na somatória, é o quarto maior grupo fabricante de automóveis do planeta, atrás de Toyota, Volkswagen e Hyundai. E, na prática, uma empresa onde boa parte do poder emana dos executivos italianos de origem Fiat, como o chairman, John Elkann, neto do lendário Gianni Agnelli.

Ironicamente, enquanto o brand Fiat anda em declínio em sua Itália natal há anos, com um line-up de produtos envelhecido – por lá, a Fiat comercializa apenas os hatches 500, Panda e Tipo, além das vans Dobló e Ulysse –, no Brasil a marca nada de braçada com uma ampla gama de projetos desenvolvidos para o nosso país como target principal, como os SUVs Pulse e Fastback, os hatches Argo e Mobi e as picapes Strada e Toro.

E aí chegamos ao âmago da questão. De um histórico quarto player entre as “quatro grandes” (junto a Volks, GM, Ford) que fabricavam carros no Brasil antes da reabertura das importações em 1990, a Fiat tornou-se a marca líder nos anos 2000 e, hoje, dentro do contexto Stellantis, tem quase 40% de share no mercado brasileiro, focando no que Volkswagen e Chevrolet parecem ter desaprendido de fazer: projetos específicos pensados para o gosto do consumidor brasileiro e executados dentro da nossa realidade de mercado emergente de renda baixa, quando comparado a Europa e EUA.

Os sucessivos acertos da filial brasileira a partir dos anos 90 – o Uno Mille, primeiro carro “popular” a se beneficiar da isenção de IPI para os carros com motor 1.0, pode ser considerado um ponto de inflexão – foram garantindo à Fiat do Brasil mais e mais credibilidade e autonomia, até o ponto atual, em que o departamento de engenharia da Stellantis em Betim (MG) praticamente “anda sozinho”, sem precisar desprender grande esforço e investimento para convencer a matriz sobre qual caminho de estratégia de produto seguir.

Um papo rápido com insiders de VW e GM mostra uma realidade bem diferente, o que explica em grande parte como ambas, outrora líderes, hoje veem o bonde da Stellantis se distanciando mais e mais na liderança do mercado brasileiro. E a nova RAM Rampage epitomiza isso.

No distante 2016, a Fiat introduziu com a Toro o conceito de uma picape intermediária com construção monobloco, menor e mais barata do que as médias construídas sobre chassis (como Ford Ranger, Chevrolet S10, Toyota Hilux e Volkswagen Amarok), caindo nas graças do consumidor brasileiro e se tornando líder entre as picapes.

Sete anos depois, a Volkswagen segue sem uma picape monobloco em seu line-up. Já a resposta da GM, a nova Montana, chegou apenas este ano e baseada em uma plataforma simples e pequena demais para realmente ameaçar a Toro.

No fim, a intermediária Montana aterrissou no mercado brasileiro mais próxima, em acabamento e motorização, das picapes compactas, como a Fiat Strada. E aqui a história se repete: enquanto a renovada Strada fechou 2021 e 2022 como o veículo de passeio mais vendido do país — primeira vez na história do mercado brasileiro em que uma picape atingiu tal feito —, a VW segue representada entre as compactas pela anciã Saveiro, sem a desejada opção de cabine dupla, enquanto a Chevrolet sequer está no segmento.

Voltando à RAM: em mais um campo em que acertou onde os rivais hesitavam, a Stellantis apostou em ressuscitar no Brasil o mercado de picapes full-size, as “picaponas” do mercado americano, que, com o passar dos anos, se tornaram grandes e caras demais para o bolso brasileiro (lembra das grandalhonas Chevrolet D20 e Ford F-1000 dos anos 80? Foram substituídas por aqui, na prática, pelas médias S10 e Ranger).

Com um posicionamento premium, focado nos chamados “CEOs do campo” do Brasil agro, a RAM passou a fazer volumes tão interessantes com suas picaponas — apesar do ticket médio na faixa dos R$ 500 mil — que, com vários anos de atraso, Ford e Chevrolet finalmente se mexeram e, em 2023, começam a correr atrás do prejuízo com o início das importações oficiais de F-150 e Silverado, respectivamente.

Capitalizando em cima do alto grau de desejabilidade criado pelos modelos 1500 e 2500 principalmente no mundo agro, a RAM passou a importar, em 2022, a RAM Classic, nada além da geração anterior da 1500, que segue em produção no México.

Com isso, o ticket de entrada na marca caiu de cerca de R$ 450 mil para a faixa de R$ 350 mil, e por isso a Rampage é uma tacada de mestre: vários cowboys do asfalto que um dia cantaram o hit “Vem ni mim Dodge RAM” podem agora concretizar o sonho, graças a um valor de entrada R$ 110 mil mais em conta do que a Classic.

Além do posicionamento “na mosca”, basta acelerar a RAM Rampage para ficar fácil cravar que a Stellantis terá mais um sucesso nas mãos. O motor Hurricane de 272 cv faz da Rampage algo que a Toro nunca conseguiu ser: veloz, com aceleração de 0 a 100 km/h em 6,9 s e velocidade máxima de 220 km/h.

Rápida e gostosa de dirigir, sua única concorrente direta por aqui, a Ford Maverick importada do México, também é. Mas em relação à picape da Ford, a Rampage exibe um acabamento mais esmerado, com um interior praticamente idêntico ao do “primo” Jeep Commander.

Por tudo isso, cumprir a missão proclamada para a Rampage no nosso mercado sequer demandará um “curto período de comportamento violento”: com a novidade, a RAM pretende, ainda em 2023, destronar a BMW como a líder do mercado premium brasileiro.

Antes da Rampage, a projeção da marca das picaponas era comercializar 10 mil unidades importadas no Brasil, enquanto os alemães, impulsionados principalmente pelo sedã 320i e pelo SUV X1 fabricados em Araquari (SC), projetam um volume anual na casa de 15 mil carros. Embalada pela Rampage, a Stellantis deve liderar em breve mais um segmento do mercado brazuca.

Rampage Interior