O interesse pelo IPO da C&A está mais ou menos como comprar nas lojas da rede: não é a melhor roupa do mundo — mas pelo preço, até que vale a pena.

Os fundos focados em value investing não estão muitos animados: a empresa tem crescido menos que o mercado, a execução tem sido errática e uma aura de mistério envolve a família controladora.

Mas gestores que gostam de histórias de turnaround e topam mais risco veem potencial na oferta, cuja demanda tende a ser bastante sensível a preço. 

A três dias da precificação, prevista para quinta-feira, a demanda está em cerca de 2,5 vezes a oferta no piso da faixa indicativa, que vai de R$ 16,50 a R$ 20 por ação, segundo fontes ouvidas pelo Brazil Journal

No low, a C&A estrearia na Bolsa avaliada em R$ 5,1 bilhões, ou cerca de 17,5 vezes o lucro estimado para 2020, muito abaixo da Renner, que negocia a 29 vezes.  A Guararapes, dona das lojas Riachuelo — que tem um benefício fiscal relevante — está negociando a 19 vezes.

“A C&A veio com um preço bem realista, dados todos os riscos”, diz o gestor de uma grande asset. “Mas acima do piso, não faz tanto sentido: no varejo, a CVC, que tem um histórico de execução mais comprovada mas passa por um momento mais difícil, está na casa das 19, 20 vezes.”

Há mais de 40 anos no Brasil, foi a C&A que trouxe para cá o conceito dos grandes magazines de vestuário no modelo self-service, numa época em que os brasileiros ainda estavam acostumados a butiques em que o vendedor trazia as peças do estoque. 

O negócio prosperou, e o Brasil se tornou o maior mercado da varejista, depois da Alemanha. Mas nos últimos anos, comeu poeira.

Enquanto a Renner cresce de 15% a 20% por trimestre, na C&A tanto a receita quanto as vendas no conceito ‘mesmas lojas’ sobem um dígito baixo. A margem operacional está na casa dos 12% contra 18% da concorrente — e as margens brutas são de 49% e 56,5%, respectivamente.  Desde 2015, a C&A praticamente não abre novas lojas. 

Aos potenciais investidores, a companhia está sinalizando três alavancas de crescimento. A primeira delas é voltar a abrir lojas: haveria espaço para 150 novas unidades nos próximos cinco anos. Hoje são 280, contra 350 da Renner.

A segunda — e talvez mais relevante — é a sofisticação do modelo de distribuição. 

Hoje, a C&A manda tudo o que recebe direto para as lojas, em toda a grade de tamanhos e peças, independentemente do que está saindo mais em cada unidade, um modelo conhecido no varejo como ‘push’. 

Essa estratégia traz um problema: por um lado, as lojas acabam ficando sem os produtos mais procurados e perdem vendas; por outro, o que sobra tem que ser remarcado, prejudicando as margens. 

A C&A vem trabalhando para desenvolver o modelo de push-and-pull, em que a reposição é feita de acordo com a demanda de cada loja e levando em conta cada SKU — incluindo tamanho e cor específicos. A Renner começou a trabalhar nesse modelo em 2012 e já vem colhendo os frutos da mudança; a Riachuelo também está em migração. 

“A C&A está no mínimo uns quatro anos atrás nesse processo”, diz o analista de outra gestora. 

A varejista quer aumentar ainda a concessão de crédito. Hoje, a C&A opera com uma joint venture com o Bradesco, que é quem decide se aceita ou não o cliente — e a taxa de aprovação é muito menor do que em outras varejistas. (A C&A faz 20% das vendas com cartão co-branded, enquanto na Renner, a porcentagem de vendas com cartão próprio é de 40%). 

A ideia é rediscutir as cláusulas da parceria com o Bradesco — que se encerra somente em 2029 — para ganhar mais liberdade na aprovação. 

Numa oferta em que as lacunas estão sendo vendidas como oportunidades, o ponto chave é a capacidade de execução do management — e é aqui que moram as maiores dúvidas.

Desde 2015, a companhia é comandada por Paulo Corrêa, o ex-VP comercial da rede que tem 15 anos de C&A — e todo o top management é prata da casa. 

No board, além de dois representes da Cofra, estão o próprio Corrêa; Thilo Mannhardt, ex-CEO da Ultrapar; e Germán Quiroga, que comandou a Cnova (o negócio de comércio eletrônico do Pão de Açúcar). O conselho não tem o input de nenhuma mulher — o que é no mínimo curioso dado que a rede vive do público feminino. (Para efeito de comparação, 25% do board da Renner é composto de mulheres.)

“Eles estão com papo de que vão fazer tudo diferente, mas na prática, são as mesmas pessoas que estavam lá”, diz um gestor que não pretende entrar na oferta. 

O discurso dos bancos e da empresa é que os controladores, que sempre lideraram a companhia com mão forte, finalmente estão dispostos a dar mais autonomia aos diretores no Brasil. 

O IPO da C&A é a primeira vez em que os Brenninkmeijer, donos da Cofra Holding, estão abrindo o quimono. 

Dona de um império que começou a ser construído há mais de um século e inclui, além da C&A, investimentos imobiliários e em private equity, a família holandesa tem uma discrição proporcional a sua fortuna. 

Os números da C&A sempre foram guardados a sete chaves. Quando a empresa precisava de um financiamento, seus banqueiros tinham que consultar os livros numa salinha de acesso restrito na sede da companhia — e ainda assim tinham acesso a apenas poucas linhas do balanço. 

A discrição beirava a paranoia. Até meados dos anos 90, a empresa tinha um código conhecido apenas por alguns funcionários em que cada letra representava um número de 0 a 9, a repórter Ariane Abdallah relatou numa matéria de 2014: “No fim do dia, alguém da alta liderança fazia uma pergunta clássica aos gerentes de loja: ‘Quanto foi a leitura hoje?’. LKK, por exemplo, significava que haviam sido vendidos R$ 200 mil em peças.”

Corrêa é o segundo diretor que não faz parte da família (o pioneiro foi Luiz Fazzio, entre 2002 e 2009) e este é o primeiro management que não tem nenhum Brenninkmeijer na composição.

“O Paulo é um cara bom, que conseguiu cortar custos e fazer um processo de turnaround sem arranhar tanto a marca”, diz um analista. “Mas as competências para crescimento são diferentes — mas não pareceu que vai replicar o que o Galló fez”.

Mesmo entre os mais céticos com o negócio, a transparência mostrada pelos executivos durante o roadshow tem chamado a atenção. “Achei que eles fossem ser bem mais travados, mas não estão tentando pintar a noiva e estão muito abertos, sem bullshitagem”, diz um gestor.  

A maior parte dos recursos da oferta vai para a Cofra. A holding deve vender de 27% a 36% de sua participação, a depender do apetite pelos lotes adicional e suplementar. Além disso, 90% da parcela primária da oferta será usada para pagar uma dívida da C&A com os controladores.

“Eles não precisam levantar muito caixa, é uma companhia pouco alavancada, que gera caixa e tem uma marca forte”, diz o analista de uma gestora que pretende entrar na oferta. “Se eles conseguirem entregar — e esse é um grande ‘se’ —, tem um potencial grande de valorização.” 

Os coordenadores são Morgan Stanley, Bradesco BBI, BTG Pactual, Citi, Santander e XP Investmentos.