Em Belo Horizonte, uma professora não resistiu à covid, deixando alunos, ex-alunos e toda uma comunidade sentindo dor e gratidão ao mesmo tempo — e a grande lição de que o homem é lembrado pela forma como vive.
 
Nos dois textos abaixo, Fabricio Carpinejar capturou a esperança da recuperação e a tristeza da despedida.
 
 
NÃO ESTÁ TUDO NORMAL (31/8)
 
 

Maria das Graças Cária foi a coordenadora de Vicente no segundo ano do Ensino Médio no colégio Santo Antônio, em Belo Horizonte. 

Eu gostava de seu sobrenome tão diferente, antiesquecimento. 

Ela ajudou o meu filho no processo de adaptação na escola, no enfrentamento de método pedagógico oposto ao experimentado em Porto Alegre. 

Ele sentiu o choque nas provas de conteúdos que não havia aprendido no primeiro ano. Precisou estudar o que não era dado em aula e que os outros colegas já tinham prévio conhecimento. 

Lembro que ela me chamou para uma conversa, muito preocupada com o desempenho do filho, que acumulava sete recuperações no primeiro trimestre. 

— Você precisa se preparar para o pior, talvez seja um ano perdido.
 
Eu respondi, rindo:
 
— Não, é o contrário, temos que sempre nos preparar para o melhor, será um ano ganho. Alcançará a aprovação por média. 

No final do ano letivo, após a publicação das notas, ela me abraçou e me falou:

— A esperança é a maior prova de amor que alguém pode oferecer para o outro. 

Partilhávamos, na nossa amizade, do significado todo especial de confiança.

Agora, eu me inundo de esperança por você, Cária, professora de Química de tantas gerações, para que passe na difícil provação da vida. Perdeu o marido pela COVID-19 e está em estado grave na CTI do Hospital da Unimed, isolada e insconsciente. Acabou contaminada pela proximidade com o esposo, em seus últimos dias. 

Vamos nos preparar para o melhor, Cária? Vamos pensar no melhor. Não desista. Não suporto a ideia de que vire um número, seja engolida pela estatística das cento e vinte mil vítimas no país do coronavírus, e perca o seu nome, a sua história, a sua caligrafia generosa na lousa. Ninguém toca no apagador até que se recupere, a sua letra permanece viva na parede. 

Eu e Vicente encontraremos um jeito que nos ouça dentro da oração. Deixa com a gente, daremos esse recado, mesmo que Deus tenha que soprar em seus ouvidos pessoalmente, a fé entra pelas janelas. Uma escola inteira ainda depende de você, volte logo, te amamos. 

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NÃO CONSEGUIMOS (2/9)
 
 
Maria das Graças Cária não resistiu. A coordenadora pedagógica do meu filho no Ensino Médio e professora de Química do colégio Santo Antônio de Belo Horizonte (MG) faleceu, aos 69 anos, na manhã dessa quarta, vítima do Coronavírus.
 
Algo em mim acordou quebrado. Não entendia o que era. Uma raiva desproporcional. Despertei às 5h e não consegui pregar o olho. Tudo me irritava, tudo não parecia certo, tudo soava injusto. Havia uma vontade de gritar mais do que chorar — o grito afônico, sufocado, ilegível.
 
O mal-estar era Cária se despedindo, sua lembrança dentro de mim fechava a porta do destino para nunca mais vê-la.
 
Não foi por falta de oração, de vontade, de amor pela vida. A doença age diferente em cada organismo. Para uns, é gripe. Para outros, é uma bomba. Não existe ainda condições de prever quem é capaz de sair impune.
 
A covid-19 atinge os pulmões com tal letalidade que o ar é raro e qualquer palavra depois inexata.
 
Um sopro de orgulho apaga-se de nosso convívio. Uma mestra. Uma discípula do diálogo. Uma orientadora de várias gerações.  Quantos escolheram a sua carreira a partir de sua paixão? Quantos profissionais agora neste momento se encontram desorientados como eu?
 
É como perder uma segunda mãe.
 
Os corredores da escola estarão silenciosos por um longo tempo, não sei quem terá coragem de limpar as suas gavetas e deitar os porta-retratos.
 
Eu admirava o jeito dela de incentivar os estudantes. Como se partilhasse de seu pingente de coração em cada pescoço.
 
O marido de Cária tinha ido uma semana antes, também infectado. Ela seguiu o amor. Não dá para recriminá-la.