A Netflix segue crescendo e gerando caixa enquanto seus competidores se esforçam para não perder dinheiro. Com uma cultura extraordinária e uma enorme oportunidade para expandir ainda mais seu mercado via anúncios, a empresa tem tudo o que buscamos em um investimento. E apesar do all-time high de hoje graças a um resultado muito forte, acreditamos que a ação ainda deve gerar retornos acima do S&P500.

Algumas empresas sempre tiveram a vida fácil. Não é o caso da Netflix. 

Menos de três anos após sua fundação como um negócio de aluguel de DVDs via correio, em 1997, a empresa enfrentou o estouro da bolha de internet, o que impossibilitou seu IPO. Numa medida desesperada, o fundador Reed Hastings tentou vender a Netflix para a Blockbuster por US$ 50 milhões – para sorte dele, sem sucesso. 

Ironicamente, nos anos seguintes, a próxima grande batalha da empresa seria travada com a Blockbuster, em condições bastante adversas: em 2001, a Netflix tinha apenas 500 mil assinantes, enquanto a Blockbuster tinha 65 milhões de membros apenas nos EUA. Mesmo assim, em cinco anos a Blockbuster estaria na lona.

Um dos fatores que ajudou a Netflix foi sua cultura superior. A apresentação Netflix Culture Slide Deck, disponível na Internet desde 2009, segue atual e provocativa.  Pode-se discordar de alguns pontos, mas é inegável que esta cultura foi muito bem pensada, depurada por anos, e de fato implementada na prática, ao contrário do que ocorre na maioria das empresas, em que apresentações de cultura acabam virando slogans vazios.

No livro A Regra é Não Ter Regras, Reed Hastings e Erin Meyer destacam pilares dessa cultura: contratar apenas as melhores pessoas, pagá-las muito bem, dar-lhes liberdade e responsabilidades, e orientá-las por contexto e não por processos.

É impressionante como a pré-seleção de um grupo de colaboradores de elite, bem alinhados, possibilita uma redução dos mecanismos de gestão/controle burocráticos (processos e políticas) que tanto afugentam talentos e enrijecem o processo decisório.

Esta cultura permitiu que a empresa fosse ágil e tomasse riscos calculados por meio de muitos experimentos realizados de forma descentralizada. Ao contrário de seu competidor engessado, a Netflix conseguiu se adaptar e reagir rapidamente às transformações do mercado.

Ao se analisar o histórico da empresa, ficam evidentes duas qualidades que apreciamos muito: resiliência e uma cultura de “gratificação adiada”.  Sobre a segunda, notamos que em negócios com efeito de rede, a estratégia ótima de longo prazo é maximizar o engajamento antes da monetização.

A Netflix executou essa receita à risca, priorizando ter mais assinantes em detrimento dos lucros de curto prazo. Somente em outubro de 2017 o plano padrão nos EUA passa a custar mais de US$ 10, um preço claramente “subsidiado” quando comparado com opções de entretenimento similares e especialmente com o valor de uma assinatura de TV a cabo.

Ou seja, estamos falando de uma empresa de 20 anos de idade e que ainda estava em modo de “gratificação adiada”. Quantas empresas aguentam passar no Teste do Marshmallow por 20 anos? Somente quando o crescimento do número de assinantes na América do Norte começou a desacelerar que os preços passaram a aumentar mais rapidamente.

Nesse contexto, numa empresa em modo de “gratificação adiada” o lucro contábil corrente não reflete o verdadeiro potencial de rentabilidade do negócio.  Acreditamos que as margens atuais estejam longe das margens que veremos quando o serviço atingir a maturidade, com uma escala de pelo menos 400-500 milhões de assinantes. (Hoje são 283 milhões.)

O streaming ainda tem muita audiência para ganhar da TV aberta e TV a cabo, e bastante espaço para crescer em países emergentes. O modelo de AVOD (o plano com anúncios) ainda é incipiente e aumenta consideravelmente o mercado endereçável de streaming ao reduzir a mensalidade.

Assim como vimos a internet evoluindo nos últimos 20 anos de banners genéricos para anúncios personalizados, podemos imaginar um futuro em que os anúncios no Netflix fiquem bastante individualizados. Nesse cenário, a receita com anúncios subiria muito e pressionaria para cima o preço da assinatura sem anúncios.

Mesmo com mensalidades mais altas, a companhia deve continuar gerando valor aos assinantes. Isso porque a Netflix criou efeitos de rede — mais assinantes viabilizam uma biblioteca de conteúdo maior e de melhor qualidade, o que por sua vez atrai mais assinantes. Exemplos disso são as séries coreanas de produção interna da empresa, inicialmente destinadas ao seu mercado local e que acabaram fazendo sucesso em vários países. 

Por trás do nosso otimismo, existe também um outro aspecto mais conjuntural, mas extremamente importante. 

O momento do ciclo de capital da indústria mudou, e o ambiente competitivo ficou mais brando. Em 2019-20, presenciamos um verdadeiro filme de terror na indústria, com vários detentores de conteúdo lançando serviços de streaming.

A apreensão com a queda de receita advinda da televisão tradicional motivou esse movimento supostamente estratégico. Porém, em um setor onde escala é essencial, e em que o líder tem mais de 280 milhões de assinantes, competidores com apenas 20 ou 30 milhões de assinantes deveriam ter dificuldades para chegar à lucratividade.

E, de fato, desde 2022, temos observado uma racionalização da concorrência, com aumentos de preços, cortes de orçamento para novas produções, e uma tendência de “rebundling” em que serviços de streaming menores unem seus conteúdos numa oferta conjunta. 

A mentalidade do setor vem mudando de “crescer a qualquer preço” para “lucratividade em primeiro lugar”. Acreditamos que essa tendência ainda não tenha se esgotado. 

Por fim, o impacto da inteligência artificial não pode ser ignorado.

Numa janela de 3 a 5 anos, é possível vislumbrar cenários em que estúdios pequenos, com orçamentos mínimos, sejam capazes de fazer superproduções. No limite, até mesmo pessoas físicas poderiam produzir filmes e séries com a ajuda da IA, inundando o mundo com conteúdo que, hoje, é relativamente escasso.

A tese pessimista seria a de que as pessoas deixariam de ver valor em pagar pela Netflix porque haveria milhares de boas séries no Youtube, por exemplo. No entanto, há atenuantes para essa preocupação. A principal delas é que a própria Netflix deve se beneficiar bastante da queda dos custos de produção. É bastante provável que vejamos os efeitos positivos da IA nas margens de 2025 ou 2026, bem antes de vermos sinais concretos do cenário pessimista.

Carregamos uma posição relevante em Netflix desde 2022. Embora o preço das ações possa não parecer uma barganha à primeira vista, projetamos um crescimento de receita acima de 10% nos próximos anos e a continuação dos ganhos de margem operacional (que evoluiu de 4% em 2016 para 18% em 2020 e deve terminar esse ano em 27%).

Nesse cenário, podemos ver um crescimento anual de lucro por ação superior a 25% entre 2024 e 2028, o que mais que sustenta os múltiplos atuais. As duras batalhas parecem ter ficado no passado, e agora a Netflix passa para a consolidação do seu império do streaming.

Bruno Leite é gestor da estratégia de global equities da Legacy Capital. Stephen Duvignau é analista na mesma gestora.