O velho ditado francês diz que ‘quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam iguais’.

A Lava-Jato está passando o Brasil a limpo, mas não basta o quase orgasmo cívico de boa parte da sociedade ao ver a polícia e os procuradores trabalhando.Mario Henrique Simonsen

O Brasil tem que abraçar mudanças nas políticas públicas e na organização do Estado para que os grileiros e parasitas da coisa pública tenham mais dificuldade — ou menos o que roubar.

Em novembro de 1993, Mario Henrique Simonsen, provavelmente o maior economista que o Brasil já teve, escreveu o artigo abaixo para a revista EXAME, da qual era colunista.

O título era quase um indiciamento: “O Estado estimula a corrupção”.

Como o texto mostra, o Estado mudou muito pouco desde então.

Simonsen nos deixou em 1997, mas suas boas ideias não precisam morrer com ele.

Elas podem se tornar as nossas ideias, e um plano de ação para um País que quer se reinventar.

Há duas maneiras de interpretar a atual maré de escândalos que inunda a política brasileira. Uma delas, altamente otimista e amplamente sublinhada pela imprensa, exalta a nossa democracia pela capacidade que vem revelando em identificar corruptos e defenestrá-los. Assim se decretou o impedimento do presidente Collor, assim serão cassados os congressistas que venderam seus passes partidários, bem como os que se locupletaram com as emendas ao Orçamento.


Uma outra leitura, insidiosa mas não menos lógica, é a de que uma democracia que produz tantos casos de corrupção e que só aumentou a inflação e a recessão é um projeto fracassado. Dentro da primeira visão, a CPI do Orçamento engrandece o Congresso como instituição capaz de separar o joio do trigo no próprio âmbito interno. Dentro da segunda, o Congresso perdeu a legitimidade, até porque a metralhadora giratória da acusação está atingindo não apenas os nanicos, mas algumas supostas reservas morais.


De fato, cada um dos modos de enxergar a crise atual conta parte da verdade. A indignação nacional contra a corrupção é fundamental para que cesse o maior estímulo ao crime, a impunidade. Mas punir não é o bastante. É preciso indagar por que a roubalheira no setor público chegou ao nível atual, certamente muito acima de qualquer paralelo histórico. A resposta se encontra em um velho provérbio, “A ocasião faz o ladrão”. A Nova República esqueceu-se de que é preciso não tentar o demônio. Isso posto, estamos na situação do indivíduo que vai à praia com um relógio de ouro, deixa-o no bolso de uma camisa na areia enquanto dá um mergulho, e se desespera, na volta, por ter sido roubado. Em uma palavra, a corrupção, no Brasil, não é apenas resultado da impunidade e da dissolução dos valores morais, mas das tentações criadas pela própria organização do Estado.


O começo de tudo é a legislação eleitoral. Pelo menos em nível federal, o custo da campanha para qualquer mandato eletivo costuma ser incrivelmente superior a todos os proventos que o eventual mandato irá render. Tal é o resultado da fraqueza do sistema partidário, da falta de adoção do voto distrital ou do sistema distrital misto. Logo, ou o candidato é milionário, ou se descapitaliza, ou recorre à ajuda dos amigos. Diante dos números, a última escolha é a mais freqüente. Acontece que muitas campanhas custam muito mais do que aquilo que a ajuda desinteressada e idealista pode render. Não surpreende, assim, que muitos políticos sejam financiados por fornecedores do governo com um investimento a ser recuperado no custo dos suprimentos ao setor público. Ou por alguma empresa interessada em obter favores do governo. Dir-se-á que isso deveria ser coibido pela legislação eleitoral, e aí vem a tragédia: a lei em vigor até as últimas eleições é tão severa que não se considera imoral o seu descumprimento. Afinal, ela proíbe qualquer donativo que não seja de pessoas físicas a partidos políticos, o que é um evidente exagero. Só que, no momento em que se aceita o descumprimento da lei, se torna impossível delimitar a fronteira entre a honestidade e a marginalidade. Especialmente quando a lei é descumprida pelo Poder Legislativo, que tem a prerrogativa de modificá-la.


A etapa seguinte é o centralismo fiscal. Não há a mínima razão para que o Orçamento da União financie escolas, estradas vicinais ou obras sociais em Estados e municípios, os famosos itens que geram as emendas dos congressistas. Dentro da lógica federativa, as transferências da União devem ser automáticas, de acordo com disposições constitucionais, pois os governos locais conhecem muito melhor seus problemas e suas prioridades do que os políticos e os burocratas de Brasília. Ninguém imagina que o presidente dos Estados Unidos negocie com o governador da Califórnia o apoio de sua bancada no Congresso em troca de alguma estrada vicinal ou coisa parecida, por várias razões: a) porque as bancadas são dos partidos políticos, e não dos governadores; b) porque o presidente não pode negociar verbas orçamentárias; c) porque a autonomia da Federação estaria sendo ferida. No Brasil, esse mercado persa é aceito pelos usos e costumes.


O terceiro motor da corrupção é o inchaço do Estado, que se pauta por duas características. Primeira: os burocratas acumulam excessivos poderes discricionários. Segunda: os homens-chave do governo são mal pagos, pois o Estado obeso não apenas se ressente da falta de recursos como também os distribui ineficientemente. O pior é quando o vírus atinge os serviços básicos que só o Estado pode prover, policiamento, justiça e defesa nacional, prenunciando a quase inevitável ruptura institucional.


Simplificar normas processuais é a maneira mais simples de reduzir poderes discricionários dos burocratas que os corruptores estejam dispostos a azeitar, e aí vale um exemplo na legislação sobre concorrências. Em toda parte do mundo se descobriu que um julgamento envolvendo, ao mesmo tempo, preço e qualidade escapa a qualquer critério objetivo. Por isso, as democracias mais maduras já aprenderam como tratar do problema: as especificações do projeto são estabelecidas pelo governo que o coloca em licitação; isso feito, cada participante da concorrência deve apresentar um seguro-desempenho (performance-bond) fornecido por uma instituição financeira credenciada, a qual se responsabiliza pelo cumprimento das especificações. Assim, todos os concorrentes passam a se nivelar em qualidade, vencendo o que propuser preço mais baixo. É lastimável que essa norma tenha sido vetada recentemente pelo presidente Itamar Franco.