A história da Cesp é uma fábula sobre como atrasos em processos de privatização destroem valor para os contribuintes.
Em março de 2008, o então governador de São Paulo, José Serra, colocou a Cesp à venda. Duas tentativas anteriores já haviam falhado: nos governos Covas (2000) e Alckmin (2001).
Desta vez, a lista de empresas pré-qualificadas incluía a CPFL, a Neoenergia, a Energias do Brasil, a Tractebel Energia, e a Alcoa Alumínio.
Mas havia incertezas com relação à renovação das concessões de algumas das maiores usinas hidrelétricas da empresa — Jupiá e Ilha Solteira — que venceriam em 2015, e o ambiente global já prenunciava o desastre: 11 dias antes do leilão, o JP Morgan teve que comprar a Bear Stearns por US$2 por ação.
Apesar de todo este clima, o Governo bateu o pé e não quis reduzir o preço mínimo da fatia de controle, de R$ 6,6 bilhões. (Colocando na conta a oferta que teria que ser feita aos acionistas minoritários e as dívidas da empresa, o cheque do comprador chegava a R$ 22 bilhões.) “O pessoal queria um valor menor, mas nós não vendemos na bacia das almas”, Serra disse à época.
Agora, mais de oito anos depois, o Governo de São Paulo vai tentar de novo.
Ontem à noite, o Conselho Diretor do Programa Estadual de Desestatização recomendou ao governador Geraldo Alckmin a retomada dos trabalhos para a privatização. Nada melhor que uma crise fiscal para impor realidades que deveriam ser aceitas em tempos de paz, mas, como diz a sabedoria popular, antes tarde do que nunca.
No caso da Cesp, o ‘tarde’ saiu escandalosamente caro.
Em 2012, a Sumidade do Setor Elétrico e Sacerdotisa dos Retornos Patrióticos, Dilma Rousseff, conseguiu devastar o setor elétrico com uma medida provisória que expropriou os acionistas das empresas do setor e forçou a Cesp a devolver 75% de seu parque de geração.
A companhia não aceitou renovar as concessões de suas três principais hidrelétricas pelos valores propostos pelo governo e, com isso, perdeu Três Irmãos, Jupiá e Ilha Solteira, que totalizavam 6.000 megawatts de potência. Agora, resta pouco a ser privatizado. A concessão mais longa, de Porto Primavera (1.500 MW) vence daqui a 12 anos. Além disso, há outras duas pequenas usinas cujas concessões vencem em 2020 e 2021, mas somam apenas 100 MW.
A Cesp que vai a leilão é um apêndice do que foi um dia.
Baseado no custo de reposição, analistas estimam que a Cesp deveria valer R$ 8 bilhões. Como o Estado de São Paulo tem 36% da companhia, sua participação deveria valer R$ 2,9 bilhões (menos da metade do valor nominal que o Governo pedia há 8 anos). Se tivesse dado um desconto no preço mínimo lá atrás, o Governo teria se livrado da dívida da empresa e carregado um caixa que teria lhe permitido, por exemplo, fazer investimentos em infraestrutura que continuam inadiáveis.
Moral da estória: quando o vendedor não ajusta o preço ao risco regulatório, quem paga a conta é o acionista da empresa — neste caso, todos os paulistas.
Hoje, a boa notícia é que o setor está sendo desenhado, e a própria Eletrobrás está se preparando para vender ativos. A má notícia é que a Cesp não é mais a gostosona do bairro.
Ela se soma a uma série de ativos à venda no país, como as usinas da Duke Energy em São Paulo, as distribuidoras da Eletrobras, e a Light, controlada pela Cemig.
Pela lógica econômico-fluvial, a Cesp vai acabar na mão dos chineses. A China Three Gorges — que levou as usinas de Jupiá e Ilha Solteira, relicitadas pelo governo federal após o fim da concessão da Cesp — é a candidata natural. Se você é dono das usinas rio acima, por que abriria mão da usina rio abaixo?
Mas, como mostra o fracasso recente do leilão da Celg, os governos vendedores têm que aprender a botar preço. Brasília não costuma não fazer conta, mas os empresários, sim.
Por fim, como tudo no Brasil é relativo, uma disputa com a União pode mudar radicalmente o valor da Cesp.
A companhia pede R$ 6,7 bilhões como indenização por investimentos não amortizados na usina de Três Irmãos, mas nas contas da União, o reembolso é de apenas R$ 1,7 bilhão a ser reembolsado em sete anos a partir de 2017. A empresa também pede R$ 1,5 bilhão por Jupiá e Ilha Solteira, mas a União diz que já está tudo amortizado. (Nada que um ‘escrow’ account não resolva.)
Ambos os pleitos estão na Justiça.
Como em todo caso de privatização, o que pode tornar a empresa interessante é o potencial de gerar eficiências.
Um analista aponta que a Cesp tem créditos fiscais de cerca de R$ 2,4 bilhões a serem recuperados por perdas passadas, mas não consegue absorvê-los porque, apesar de ter uma geração de caixa bastante alta, acaba registrando lucros contábeis menores por conta de uma série de provisões e problemas judiciais. (No último balanço, havia R$ 2,8 bilhões em provisões, enquanto as perdas consideradas possíveis, mas que ainda foram não baixadas, somam R$ 4,2 bilhões.)
“Um comprador mais eficiente pode não só reduzir os custos de operação como colocar um time jurídico de primeira, limpar essas provisões e receber os créditos”, diz este analista.