Desde que o Barão de Mauá construiu a estrada de ferro que levou o seu nome, o negócio de ferrovias no Brasil já teve seus (poucos) altos e (muitos) baixos.

Segundo o historiador Jorge Caldeira, “de 1870 a 1940, grosso modo, as ferrovias eram as maiores empresas do Brasil, as maiores empregadoras e davam uma margem de lucro bastante alta”. Nos anos 40, quando passaram a enfrentar a concorrência das rodovias, o velho Getúlio resolveu agir: o Governo se propôs a sanear e reorganizar o setor, estatizando as concessões deficitárias. Sucessivos governos investiram no setor, e em 1960, o Brasil alcançou o ápice da sua malha:  38.287 km de trilhos instalados. 

Mas como o Estado-empresário só consegue fazer o vôo da galinha, a Rede Ferroviária Federal (RFFSA) – criada por Juscelino em 1957 – e a Ferrovia Paulista (FEPASA), estatal que unificava a malha paulista, acabaram quebrando, e sem investimento, o setor ficou sucateado.

O fato é que, pelo menos no último meio século, o trem tornou-se um modal de segunda classe, e a maior concessão do setor — a velha ALL — provou ser mais um ralo de caixa do que uma locomotiva de lucros.

Em 2014, o grupo Cosan achou que poderia injetar eficiência no negócio.  A companhia de Rubens Ometto Silveira Mello comprou a ALL, comprometeu-se a fazer bilhões em investimentos, e deu origem à Rumo.Rubens Ometto Silveira Mello

O investimento ainda está longe de se pagar, mas um passo essencial para o sucesso da empreitada será dado nas próximas semanas, quando o Governo decidirá se renova antecipadamente a concessão da Malha Paulista, o trecho mais importante da ALL. O contrato original vence em 2028, e a ideia é renová-lo por 30 anos.

O que está em jogo na decisão de Brasília é não apenas a rentabilidade da Rumo — uma companhia que vale R$ 10 bilhões na Bolsa e um dos projetos mais ambiciosos do País — mas também o futuro do setor de ferrovias e da competitividade numa era em que os empresários da infraestrutura se ressentem de anos de volatilidade regulatória. 

O processo da Malha Paulista — uma artéria do agronegócio, ligando o Mato Grosso do Sul ao Porto de Santos — é relevante porque vai estabelecer os parâmetros para uma série de outras ferrovias que estão nas mãos da própria Rumo, da Vale, da MRS e da VLI, o consórcio entre Vale, Mitsui, FGTS e Brookfield que opera a Ferrovia Centro-Atlântica.  

Para garantir a renovação antecipada, a Rumo se propõe a investir R$ 5 bilhões para mais do que dobrar a capacidade da malha até 2023— dos atuais 30 milhões de toneladas para 75 milhões. A velocidade média dos trens terá que subir 44%, de 13,8 km/h para 17,5 km/h no mesmo período.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) está recebendo contribuições sobre a proposta de renovação até o começo de fevereiro.

A necessidade de investimento no setor é tão grande que os clientes da Rumo estão sendo os primeiros a apoiar o pleito da empresa.

“Não há tempo a perder. É louvável a prorrogação. É mais dinheiro da porteira para dentro, é mais dinheiro no interior”, disse o gerente de logística da Cargill, Altamir Olivo, na primeira audiência pública, realizada terça-feira em São Paulo. (A segunda será hoje, em Brasília.)

Pedro Paranhos, executivo da Copersucar — concorrente da Cosan no mercado de açúcar — defendeu a ampliação de capacidade viabilizada pela proposta e fez uma defesa enfática da Rumo: “Desde a fusão [com a ALL], houve uma melhoria significativa do serviço. O que está sendo discutido não é a ALL, é a Rumo, o que traz segurança de longo prazo.”

A única nota dissonante no processo de renovação parece ser a Associação Nacional dos Usuários de Transporte de Carga (Anut), que tem um histórico de litígio com a velha ALL por conta de desentendimentos sobre tarifas.  

A Anut está pedindo que a ANTT obrigue a Rumo a acrescentar 30% de capacidade na malha para que um terceiro opere o mesmo trecho e concorra com a Rumo.

“Não somos contra a prorrogação,” diz o presidente da Anut, Luiz Baldez. “A questão é: como introduzir competição num monopólio natural? Isso tem que estar bem estabelecido na prorrogação dos contratos. Se não existir, a competição fica prejudicada.”

Mais especificamente, a Anut quer preservar a possibilidade de um Operador Ferroviário Independente, um operador logístico que possa usar os trilhos dos concessionários por meio do pagamento de uma taxa, o chamado ‘direito de passagem’.

A livre concorrência é sempre uma causa nobre, mas este é um caso clássico em que o ótimo é inimigo do bom:  com a carência de infraestrutura no Brasil, o modelo regulatório mais apropriado para o País é um que incentive o crescimento do capex, em vez de criar obrigações que aumentam a incerteza e não criam nem 1km de trilho.

É preciso melhorar a qualidade da malha e investir para expandi-la, e, como dinheiro não nasce em árvore, alguém tem que fazer o investimento e ser remunerado por isso.

Na tentativa de gerar concorrência e baixar tarifas, os últimos governos mexeram na regulação como quem troca de camisa, confundindo as empresas.

Em 2012, o Governo Dilma quis inovar e implantar um modelo de ‘open access’, em que há separação entre as figuras do gestor da malha, que constrói a linha, e quem opera as locomotivas (o operador). Este modelo funciona bem na Alemanha, onde o Estado faz o papel de gestor e assume o risco de demanda, redistribuindo os contratos entre vários operadores.

No Brasil, quem compraria a capacidade seria uma estatal, a Valec, mas — surpresa — nenhum empresário quis topar o risco de ser pago pelo Estado, e o modelo nunca decolou.

Agora, se a racionalidade econômica não prevalecer, o falso dilema entre competição e oferta pode continuar atrasando o trem da história no Brasil. 

A Deutsche Bahn, a eficiente estatal alemã, chegou ao país em 2011 e até agora não conseguiu fazer nenhum investimento.  Na audiência pública, seu representante mandou um recado ao Governo:

“Existe uma necessidade de investimento e um investidor privado acreditando,” disse Gustavo Gardini, diretor da empresa alemã. “Não se pode perder tempo colocando dificuldades. Meu pedido é: ‘governantes, agora pensem de forma sistêmica’. O próximo passo é renovar outras concessões e expandir a malha de forma consistente”.