A decisão da Receita Federal de incluir a Irlanda na lista de paraísos fiscais (tecnicamente, ‘Países de Tributação Favorecida’) e de alterar as regras para as holdings austríacas de companhias brasileiras causou comoção entre investidores e mobilizou os escritórios de advocacia nos últimos dias.

Mas, ao que tudo indica, houve muito barulho por pouco:  dentre as maiores multinacionais brasileiras, a BRF já operava dentro dos padrões previstos pelas novas regras para as holdings austríacas, escapando de um aumento de tributação.  E a JBS, que está no meio de uma reorganização societária que vai colocar a maioria de seus ativos sob uma holding com endereço na Irlanda, também parece não correr nenhum risco.

Os documentos que a JBS enviou à Securities and Exchange Commission (SEC) mostram que a nova empresa irlandesa, a JBS Foods International, conduzirá seus negócios a partir de Hertfordshire, no Reino Unido, e que portanto não será residente na Irlanda para efeitos fiscais.

A Instrução Normativa — publicada anteontem no Diário Oficial — altera a lista de paraísos fiscais criada em 2010, e é mais um esforço da Receita para fechar as brechas de planejamento fiscal que permitem a muitas empresas reduzir suas alíquotas efetivas: ou seja, pagar menos imposto.

Os primeiros relatos sobre a nova norma da Receita trouxeram algumas incorreções técnicas.  A Áustria não foi considerada pela Receita um ‘paraíso fiscal’. A instrução passa a incluir somente as holdings com sede na Áustria no chamado Regime Fiscal Privilegiado, mas, diferentemente dos países considerados paraísos fiscais, não está sujeito a uma ‘alíquota majorada’ de 25% sobre rendimentos.

Como norma geral, a nova instrução traz três repercussões fiscais para holdings austríacas que pertencem a empresas brasileiras:

1) O limite de dedutibilidade de despesas financeiras em empréstimos contratados pela empresa no Brasil junto à sua subsidiária cai de 2x o patrimônio líquido para 0,3x.

2) A empresa brasileira perde o direito de consolidar seus lucros e prejuízos no exterior para efeito de pagamento de IR no Brasil. Por exemplo, imagine uma empresa brasileira que tenha uma holding na Áustria, a qual, por sua vez, controla uma operação na Alemanha e outra na China. Pela regra anterior, se a Alemanha gerou um lucro de 100, e a China deu um prejuízo igual, a empresa pagaria zero de imposto no Brasil sobre estas operações.  Pela nova regra, a empresa vai recolher no Brasil o imposto sobre o lucro da Alemanha, mas poderá deduzir o imposto já pago naquele País.

3) Qualquer venda feita por uma empresa brasileira para uma holding austríaca fica sujeita às regras de ‘preços de transferência’, um princípio internacional que busca, para efeito de tributação, manter um lucro mínimo no Brasil em operações de empréstimo, importação ou exportação de bens e serviços.  A nova norma pretende evitar operações de triangulação e outros esquemas pelos quais uma empresa brasileira poderia realizar um prejuízo no Brasil enquanto sua contraparte registra um lucro lá fora.  (Num cenário hipotético, a brasileira poderia usar este esquema para evadir o imposto aqui e receber algum tipo de rebate da contraparte.)

Mas quando uma empresa possui operações e negócios legítimos na Áustria — em vez de uma ‘shell company’ vazia, desenhada especificamente para planejamento fiscal — nenhuma dessas repercussões se aplica. É o chamado ’teste de substância’, criado para cobrir operações legítimas com holdings na Holanda e Dinamarca.  

Por essa interpretação, as normas não devem alterar em nada a tributação das holdings austríacas em situação equivalente. Este parece ser o caso da BRF Gmbh, a holding austríaca da BRF, que tem sede, funcionários e até um centro de serviços compartilhados em Viena.

A norma da Receita diz: “Entende-se que a pessoa jurídica que exerce a atividade de holding desempenha atividade econômica substantiva quando possui, no seu país de domicílio, capacidade operacional apropriada para os seus fins, evidenciada, entre outros fatores, pela existência de empregados próprios qualificados em número suficiente e de instalações físicas adequadas para o exercício da gestão e efetiva tomada de decisões relativas”.

Por enquanto, o maior perdedor com a nova norma são as companhias aéreas, que historicamente arrendam aviões de empresas com sede na Irlanda. O imposto sobre o aluguel destes aviões subirá de zero para 25% (o custo real, com o chamado ‘gross up’, chega a 33%. (De acordo com os advogados das empresas aéreas, esta mudança não se aplica ao arrendamento mercantil financeiro, ou seja, aquela operação em que a companhia aérea tem a opção de comprar a aeronave ao final do contrato. Apenas os arrendamentos simples sofrerão o aumento, o que afetará 300 aeronaves da frota comercial brasileira de 519.)

“Por uma decisão tomada há meio século, 80% dos leasors [as empresas que são donas dos aviões e os arrendam] estão na Irlanda,” diz Eduardo Sanovicz, presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas.  “Uma parte importante da frota das companhias aéreas é leasing, e este custo não dá pra ser absorvido por um setor que, como você sabe, disputa cada centavo do mercado. Isso pode paralisar a nossa operação.”

Sanovicz está pedindo ao Governo que reconsidere a medida.