O capitalismo americano está revendo seus conceitos — drasticamente.

O Business Roundtable — associação que reúne as maiores companhias dos Estados Unidos, com faturamento somado de mais de US$ 7 tri — decretou na semana passada que o lucro não é o propósito maior das empresas. 

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No manifesto, assinado por 181 CEOs de empresas como JP Morgan, Amazon, Apple, Walmart, ExxonMobil, AT&T e Ford, a organização atesta o compromisso com os consumidores, empregados, fornecedores e comunidades, nesta ordem. A geração de valor “de longo prazo” vem em sexto e último lugar.

Os céticos dirão, com razão, que o manifesto é apenas uma carta de intenções, mas, ainda assim, trata-se de da mudança mais relevante no conceito de capitalismo desde 1970, quando Milton Friedman assinou um artigo no New York Times defendendo — em tom ácido — que a missão das companhias é apenas e tão somente dar lucro, e que a partir daí o livre mercado se encarregaria do resto. 

No artigo, “A Responsabilidade Social das Empresas é Aumentar Seu Lucro”, Friedman condenava como ‘socialismo’ a simples menção aos ‘efeitos sociais’ do bom uso do capital.

“Os homens de negócios acreditam que estão defendendo a livre iniciativa quando afirmam que as empresas não estão ‘meramente’ preocupadas com lucro, mas também com a promoção de efeitos sociais desejáveis”, escreveu o economista no texto que se tornou antológico. “Mas na verdade eles estão — ou estariam, se alguém os levasse a sério — pregando socialismo puro e descarado”.

Cinquenta anos depois, com uma sociedade crescentemente desigual e na qual o descrédito aos empresários nos Estados Unidos é tão grande quanto o dos políticos, até o CEO do maior banco americano ousa discordar.

“O sonho americano está vivo, mas se esgarçando”, disse Jamie Dimon, que também é chairman do Business Roundtable, na nota divulgada pela associação. “Os principais empregadores estão investindo em seus trabalhadores e comunidades porque eles sabem que essa é a única forma de ser bem sucedido no longo prazo.” 

Desde 1997, o Business Roundtable colocava o lucro como prioridade no seu manifesto.

O giro de 180 graus vem anos depois que investidores começarem a cobrar uma postura mais consciente por parte das empresas (ainda que a definição seja subjetiva). 

O CEO da Blackrock, Larry Fink, é uma espécie de precursor da ideia. No começo do ano passado, Fink enviou uma carta aberta aos CEOs de empresas listadas dizendo que, dali em diante, a maior gestora de investimentos do mundo estaria atenta ao impacto que suas investidas têm sobre o mundo. 

“Para prosperar, cada companhia terá que entregar não apenas performance financeira, mas também mostrar como faz uma contribuição positiva para a sociedade”, vaticinou. 

Mais do que bom mocismo, parte da comunidade de investidores percebeu que a sustentabilidade é uma forma de ganhar dinheiro: há cada vez mais evidências de que a empresas que se preocupam com todos os stakeholders e não apenas com os acionistas são que as dão o maior retorno no longo prazo.

Num estudo de 2015, o Morgan Stanley avaliou o desempenho de fundos com critérios de sustentabilidade que existiam há pelo menos sete anos. O resultado: os retornos eram iguais ou maiores do que os de fundos tradicionais em 64% dos casos.

Outro levantamento mais recente feito pelo MSCI concluiu que bons atributos de ESG — environmental, social and governance — se traduzem tanto em menor custo de capital e maiores valuations para as empresas, como em maior rentabilidade e menor exposição a riscos de cauda.

Porém, mais do que a pressão dos próprios investidores, a mudança nas prioridades das empresas reflete uma transformação nas demandas da própria sociedade. 

“A desconfiança em relação às empresas americanas cresceu a tal ponto que a própria ideia de capitalismo está sendo debatida na cena política”, escreveu colunista do New York Times, Andrew Ross Sorkin. “O populismo está sendo acolhido nos dois extremos do espectro político, quer se trate do protecionismo comercial de Donald Trump ou da supremacia da rede de proteção social do senador (e pré-candidato à Presidência) Bernie Sanders”.  

O novo discurso tem implicações para diversos aspectos do dia a dia do capitalismo.

Por exemplo: hoje, um ‘investidor ativista’ é sinônimo de alguém que pretende influir no management com o objetivo quase único de valorizar a ação no curto prazo.

A remuneração dos executivos é outro problema que terá que ser redefinido: hoje, ela está cada vez mais ligada à performance da ações. Se, por um lado, isso significa algum alinhamento de interesses com os minoritários, por outro é preciso que o horizonte considerado seja mais longo. 

De acordo com a Bloomberg, cerca de dois terços do pagamento dos CEOs no S&P 500 está atrelado às ações da empresa. Os CEOs, por sua vez, duram, em média, seis anos no cargo. 

O problema aqui é convencer os mercados a aceitar essa visão de longo prazo. Neste sentido, já há propostas de que as empresas listadas parem de reportar resultados trimestrais e passem a fazê-lo apenas duas vezes por ano.

Dias depois que o Business Roundtable publicou suas novas diretrizes, uma lista de 33 empresas que já rezam por essa cartilha desafiaram os signatários a tirar o discurso do papel.

Essas empresas —  incluindo a Natura, a fabricante de sportswear Patagônia e a Ben & Jerry’s — têm o status de ‘B-Corporation’, uma certificação só concedida a quem se compromete a guiar seu negócio levando em conta seus funcionários, consumidores, fornecedores, comunidade e o meio ambiente. 

Num anúncio de página inteira no New York Times endereçado aos “Caros CEOs do Business Roundtable”, as ‘B Corps’ exortaram em letras garrafais: “LET’S GET TO WORK.”  

“Com a contínua resistência dos investidores em relação a essa nova definição de negócio, temos trabalho a fazer para ajudá-los a ver que uma governança voltada a todos os stakeholders gera confiança e valor,” dizia o anúncio.

O velho Milton se revira no túmulo.