Na semana passada, uma obra da artista cubana Ana Mendieta foi vendida num leilão da Christie’s por US$ 567 mil.
Por trás deste preço recorde – para uma artista pouco reconhecida na sua época – está uma história que diz muito sobre o espaço que as mulheres têm ocupado no meio artístico ao longo do tempo.
A história de Mendieta – uma artista múltipla que ia da performance à escultura – já foi contada em inúmeros artigos, no excelente podcast Death of an Artist e, em breve, vai virar um seriado no streaming.
Mendieta nasceu em Havana em 1948, e teve a vida interrompida em 1985, quando caiu de uma janela em Nova Iorque. Tinha 36 anos. Na época, estava casada com o renomado artista americano Carl Andre, considerado o pai do movimento minimalista. As circunstâncias da morte geraram suspeitas de que Andre poderia tê-la empurrado.
Mendieta pertencia a uma família politizada e de classe alta, que vivia em uma casa confortável e passava férias na casa de praia de Varadero. Depois da chegada de Fidel ao poder, o pai, inicialmente um apoiador do regime, começou a discordar da violência e do autoritarismo e rapidamente se tornou um opositor, o que o obrigou a enviar as duas filhas para os EUA, na famosa Operação Peter Pan.
Chegando na América, as duas foram separadas e colocadas em um orfanato; anos difíceis se seguiram até Mendieta entrar na faculdade e começar a estudar arte.
A arte seria sua salvação.
Logo que chegou na faculdade em Iowa, um caso de estupro e assassinato de uma aluna a abalou muito. Fez sua primeira performance derramando sangue sobre seu corpo para reproduzir o crime. Na sequência, fez um vídeo em que filmava a reação das pessoas na rua quando viam uma poça de sangue na calçada.
A polêmica em torno dos trabalhos despertou curiosidade sobre quem seria a jovem estudante cubana, corajosa e articulada. O professor Hans Breder, também artista e respeitado no meio, ficou encantado por ela. Os dois formaram uma dupla romântica e artística por vários anos.
Terminada a faculdade, sem dinheiro ou contatos, Mendieta foi tentar a sorte em Nova York. Passou a frequentar vernissages, aulas e debates até conhecer Carl Andre. Ele era um artista estabelecido profissional e financeiramente, amigo de Sol Lewitt, Frank Stella (morto semana passada) e Lawrence Weiner, além de venerado por todos os galeristas da cidade.
Os dois, que pareciam opostos, se apaixonaram e em pouco tempo se casaram; era o terceiro casamento dele. Ao lado de Andre, Mendieta conheceu o “crème de la crème” das artes.
Enquanto o trabalho de Mendieta crescia, seu relacionamento se deteriorava. Ele bebia muito, e ela suspeitava de casos extraconjugais.
Depois de nove meses casada, Ana teria contado a uma amiga que estava pronta para pedir o divórcio. Na noite em que falaria com Andre, ela caiu ou foi jogada da janela. Ele ligou 911 e, pela gravação da polícia divulgada no julgamento, disse que o casal havia brigado sobre quem teria mais reconhecimento do público, o que teria deixado Mendieta exaltada e a levado a se jogar do 34º andar em que moravam.
Quando a polícia chegou, Andre mudou completamente a versão, dizendo que estava vendo um filme e, quando foi para o quarto, sua esposa não estava mais lá, e a janela estava aberta. O investigador estranhou o rosto arranhado do artista e o fato de a janela ser alta e pesada para uma mulher tão pequena abrir sem uma cadeira ou um apoio. (Mais tarde soube-se que a vítima tinha pânico de altura.)
Quem assistiu ao filme francês Anatomia de uma Queda, vencedor do Oscar de melhor roteiro, já percebeu semelhanças com o caso de Ana e Carl.
Mendieta fez uma performance em que usou sangue na neve para preencher a silhueta de uma pessoa, que é justamente a imagem mais emblemática do filme premiado.
A jornalista Branca Vianna escreveu uma ótima análise na edição de março da Revista 451, e também conversou com Fernanda Torres sobre as semelhanças entre o filme e o caso Mendieta no podcast 451 MHz.
Com tantas evidências e versões contraditórias sobre como a artista havia caído, Andre foi preso mas logo liberado mediante uma fiança de US$ 250 mil, quitada pelo amigo Frank Stella.
Durante o julgamento a defesa tentou mostrar que a arte de Mendieta era funesta, com o constante uso de sangue, sugerindo que haveria nela um desejo suicida latente. A tática espantou até os apoiadores de Andre: atacar a arte de Mendieta e sua liberdade artística parecia um golpe baixo demais.
Outra estratégia do acusado foi pedir dispensa do júri, usualmente formado por latinos ou funcionários públicos, que não seriam simpáticos ao caso. O réu teria mais chance de convencer somente o juiz, um homem branco de classe média. Deu certo. O juiz sentenciou que as provas não eram “beyond reasonable doubt”, e o inocentou.
Carl Andre voltou para o mesmo apartamento e dormiu no mesmo quarto em que Ana caiu da janela até morrer em janeiro deste ano, aos 88 anos.
Depois do julgamento, sua carreira continuou ascendente, vendendo suas obras a preços milionários e, pelo menos, com uma exposição pelo mundo por ano. Ele e sua galeria conseguiram que o assunto fosse pouco falado na imprensa, com também socialmente, até pouco tempo atrás.
Nos anos 80, num surto de hipocrisia, o meio artístico nova-iorquino ficou mais chocado com a ousadia de se acusar de um crime brutal o artista que era o deus do minimalismo – um intelectual respeitado, conhecido por seus ideais marxistas e ativismo social – do que com a morte de Mendieta.
Passaram (muito) pano para o fato de que Andre deu quatro versões diferentes sobre a noite do crime, ficava agressivo quando alcoolizado, vestia-se com um macacão de operário mas morava em um prédio luxuoso, com porteiro uniformizado, e tomava bebidas caras e viajava com frequência para a Europa.
Formou-se assim um “tale of two Carls”: os que acreditavam em suicidio, e os que tinham certeza do assassinato.
A polarização culpado x inocente, mulher x homem, branco x latina, insider x outsider rendeu muitos debates pelo Soho. Artistas como Lawrence Weiner achavam que a campanha contra Andre era uma perseguição de mulheres feministas radicais – numa época em que o ambiente era despudoradamente machista.
Parecia que a sociedade não queria que ele caísse em desgraça porque todo um imaginário colapsaria junto. Andre representava a pureza da arte e o protótipo perfeito do que era formalmente esperado de um artista (gênio/intelectual/ativista). Havia um simbolismo a ser preservado, ainda que ao custo da verdade sobre a morte de uma mulher latina.
Quando uma artista jovem morre, não se sabe como o trabalho teria amadurecido. A produção de Mendieta foi interrompida e por anos esquecida, sendo ofuscada pelas dúvidas sobre sua morte. Hoje a releitura de suas obras tem se provado extremamente contemporânea: ela estava à frente de seu tempo.
Muitas mulheres continuaram a protestar na frente das exposições de Andre – com cartazes e gritando “assassino!” – e nos restaurantes que ele frequentava.
Na grande retrospectiva de Andre na DIA: Beacon, em 2015, um grupo de poetas e artistas se organizou para fazer um protesto pacífico. Mais de 15 mulheres entraram na exposição e choraram copiosamente juntas por 20 minutos pela morte da artista. O áudio da performance é de arrepiar (está disponível no episódio 6 do podcast “Death of an Artist”).
Em 2018, o New York Times publicou um obituário tardio de Mendieta, reconhecendo que ela havia sido excluída da história. O texto afirmava que Mendieta havia sido uma grande artista, uma verdadeira maverick, com um trabalho por vezes violento e marcadamente feminista, mas pioneiro e original.
Em 2022, a curadora Helen Molesworth criou o podcast “Death of an Artist”, com 8 episódios, sobre a morte de Mendieta e o julgamento. Molesworth disse à Vanity Fair: “O que é devastador na história é que nosso sistema de justiça não protege as pessoas sem poder.”
A atriz America Ferrera, indicada ao Oscar pela atuação no filme Barbie, interpretará Mendieta num seriado produzido pela Amazon Prime, ainda sem data de lançamento.
O destaque do leilão da Christie’s é mais uma evidência de que Ana Mendieta chegou ao mainstream quase 40 anos depois de sua morte. O que não surpreende muito quem acompanha o mercado norte-americano: a sociedade lá parece mais segura em valorizar as artistas mulheres só quando elas estiverem mortas ou com mais de 80 anos.
Na foto do topo: “Untitled”, um auto-retrato de Ana Mendieta coberta de sangue.
Na foto de baixo: Manifestação do grupo WhereisAnaMendieta (imagem do Facebook).