Sem saber ler ou escrever, o espanhol Roberto Juste Bargiela desembarcou no porto de Santos aos 18 anos de idade, em 1954. Os parentes distantes que o iriam recolher nunca apareceram, e o jovem da Galícia dormiu entre armazéns, no chão do cais, nas três primeiras noites no Brasil (fazia calor, pelo menos).

Camponês, nascido na montanhosa Salceda de Caselas, província de Pontevedra, foi convocado a trabalhar na roça desde os 5 anos. Com uma relação dura com seus pais-patrões, fugiu algumas vezes de casa. Mas chegou a um acordo com eles: aos 18 anos, teriam que pagar a passagem de navio que o tiraria do país ainda devastado pela Guerra Civil. Deixou para trás as cinco irmãs — outro irmão já tinha morrido, também ao escapar dos maus tratos, congelado na neve enquanto dormia ao relento.
 
Nas docas santistas, desmaiando de fome, foi resgatado por uma família galega que tinha uma pensão na zona portuária e ali teve seus primeiros empregos, como cortador de batatas, cozinheiro, garçom e faxineiro. Alfabetizou-se sozinho, aprendeu a dirigir, virou mecânico, motorista de ônibus, de caminhão, além de atacar como pedreiro e carpinteiro. Nunca tirou um dia de férias.
 
Com cabelos cor de fogo, olhos verdes e uma pele naturalmente avermelhada (pense em um viking com bronzeado permanente), era popular na comunidade espanhola da Baixada Santista, onde sempre cantou ou tocou sua gaita de fole.

Além do Centro Espanhol de Santos, frequentava o Jabaquara, time da segunda divisão fundado por jornaleiros espanhóis há mais de um século (a versão litorânea do Corinthians). Foi nessa comunidade, onde poucos aprenderam a falar bem o português, que conheceu a mulher, Dolores, galega como ele. Mas só propôs casamento quando já estava assentado e com casa própria.

Essa ascensão social fala bem do Brasil que o recebeu. Naquele ano de 1954, São Paulo celebrava seu Quarto Centenário, inaugurando o parque do Ibirapuera, um legado que permanece até hoje. 11% da população havia nascido no exterior (hoje não chega a 2%). Santos era um dos portos mais modernos do mundo. Ambas as cidades, ímãs de talentos e de gente com muita vontade de trabalhar, como seu Roberto.

Nas duas últimas décadas, nessas peças que a nostalgia prega, quis voltar a ser camponês no interior da Galicia. Passou boa parte do tempo em um pequeno sítio que construiu em Salceda, a meia hora de Vigo. Cuidava de pequenos animais e plantações, como na infância. 

Ainda assim, sentia-se estrangeiro nos dois lados do Atlântico e nunca conseguiu exorcizar os demônios de sua criação. 

Briguento e muito turrão até para os padrões espanhóis, tinha dificuldade em expressar sentimentos ou mesmo fraquezas. Retardou ao máximo uma obrigatória visita ao hospital. Estava de volta ao Brasil há poucos meses.

Morreu aos 85 anos, em Santos, após um infarto fulminante. Deixa a viúva, dois filhos e um neto, e mais de quarenta sobrinhos.

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Nota do editor:

No texto acima, Raul Juste Lores homenageou seu pai fazendo o que faz de melhor: escrevendo.

Na trajetória de Roberto Juste, resgatamos a memória de um Brasil em que se podia começar do zero e não acabar na miséria. Aprendemos sobre solidariedade, acolhimento, e um sentido de comunidade que tem sido devastado pela pandemia, pela polarização política e pela mudança geral do mundo.

A avaliação do legado pessoal de Roberto cabe à família, mas há uma parte que ele dividiu com todos nós e que seu obituarista não pode alardear:  o próprio Raul, um filho carinhoso, profissional singular e um homem que, tendo herdado as circunstâncias do pai, teve a coragem de fazer seu próprio caminho.

Este artigo foi publicado primeiro na Folha, a casa de Raul por mais de 10 anos, e que gentilmente permitiu sua reprodução.

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