Poucos bancos paulistanos não têm alguma de suas sedes concebida pelo arquiteto Gian Carlo Gasperini. Com mais de 1400 projetos construídos, 1250 deles nos 53 anos em que dirigiu o escritório Aflalo Gasperini, o ítalo-brasileiro teve uma produção em escala niemeyeriana. Morto no último dia 15, aos 93 anos, sua marca está presente em diversos pontos e momentos da história de São Paulo das últimas sete décadas, com a longevidade curiosamente comum a tantos grandes arquitetos.
Quando donos de banco ainda se importavam em ter a arquitetura mais atualizada e moderna possível em seus escritórios, Walther Moreira Salles levou Gasperini, então com 29 anos, a Nova York para desenvolver a sede paulistana de seu Banco Moreira Salles, na Praça do Patriarca, em parceria com o escritório americano Skidmore, Owens & Merrill (SOM) em 1956. No mesmo ano, Gasperini projetou para seu então chefe, o franco-brasileiro Jacques Pilon, os residenciais gêmeos Pauliceia e São Carlos do Pinhal, na Avenida Paulista, até hoje um dos mais elegantes da Quinta Avenida paulistana.
 
Em 1958, já com escritório próprio, participou de um concurso de projetos com outros três arquitetos jovens, para desenvolver um edifício de escritórios com galeria de lojas na avenida São Luís, então a Park Avenue da capital. Venceu, empatado com Salvador Candia. Os dois desenharam juntos o Edifício-Galeria Metrópole, onde, nos anos 1960, Elis Regina, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque batiam ponto e cantavam. Décadas depois, outra obra dele, o Credicard Hall, também entraria para a história musical da cidade quando João Gilberto mostrou a língua para uma platéia de VIPs um tanto barulhentos e desrespeitosos, na inauguração da casa. Também em carreira solo, desenhou dezenas de supermercados PegPag, que seriam depois incorporados pelo Pão de Açúcar.
Gasperini se juntou aos colegas Plínio Croce e Roberto Aflalo para participar de um concurso em Buenos Aires. Venceram, mas a chamada Torre Peugeot nunca saiu do papel. Ainda assim, foi responsável por criar o escritório Croce, Aflalo e Gasperini há 58 anos.
 
A produção de marcos da cidade explodiu com a união de forças: o primeiro shopping da cidade, o Iguatemi, na Faria Lima; o brutalista Tribunal de Contas do Município, com seu jeitão de Transformer e sustentado em apenas quatro apoios, perto do Ibirapuera, à vista de quem dirige rumo a Congonhas; a sede da IBM, que se exibe para quem trafega na 23 de Maio; os edifícios do Citibank e do Sudameris, na Paulista; parte do Centro Empresarial do Itaú, no Jabaquara; e a série de edifícios Atrium, na Vila Olímpia. Mais recentemente, os corporativos Rochaverá, Eldorado Business Tower, Infinity Tower (que abriga o Credit Suisse, Goldman e Facebook), e a filial paulistana da escola Avenues.
 
Gasperini fez parte de uma legião estrangeira que revolucionou a arquitetura brasileira entre os anos 1930 e 1950, quando a nossa legislação e a nossa economia ainda conseguiam atrair grandes talentos para cá. Nascido em 1926 de família fiorentina, o menino Gasperini acompanhou o pai, médico sanitarista, em trabalhos pela Grécia, Eritreia e Egito. Cedo, aprendeu francês e inglês. Com mãe brasileira, filha de italianos, Gian Carlo abandonou a faculdade de arquitetura em Roma no meio, quando a família decidiu deixar a Itália devastada pela Segunda Guerra e se mudar para o Rio de Janeiro. Eram os anos que Niemeyer, Lúcio Costa, Reidy e cia. revolucionavam o modernismo, e o jovem ítalo-brasileiro conseguiu terminar seus estudos e se formar na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, em 1949 (a mesma onde havia estudado, duas décadas antes, Oscar Niemeyer, aliás).
 
Ter um diploma brasileiro fez enorme diferença no futuro do arquiteto. Diversos europeus com bagagem enorme, como Luciano Korngold, Franz Heep e Alfredo Duntuch, tiveram que criar construtoras porque penaram mais de dez anos para obter naturalização, revalidação do diploma ou registro no Conselho de Engenharia e Arquitetura, o Crea. Não podiam assinar ou trabalhar como arquitetos. Mesmo Lina Bo Bardi tentou (e não foi aceita) lecionar na USP. O contraste com os emigrados para os Estados Unidos é chocante: a turma da Bauhaus, de Walter Gropius a Mies van der Rohe, pôde rapidamente trabalhar no país e foram convidados a dirigir algumas das melhores faculdades americanas, como Harvard e o Illinois Institute of Technology. Azar da academia brasileira. Exceção, Gasperini lecionou por mais de quatro décadas na USP.
 
Em um ambiente que valorizou por muito tempo o gênio solitário e criativo, mais artístico que profissional, Gasperini e seus colegas têm uma responsabilidade enorme na profissionalização da arquitetura no país. Como os pioneiros Pilon, Rino Levi e Oswaldo Bratke, criaram escritórios profissionais que educaram várias gerações de projetistas.
Nem tudo que saiu do escritório foi memorável, claro. Como Niemeyer, que viu construídos “apenas” 600 de seus projetos, a produção de Gasperini também teve altos e baixos, algo natural para uma produção dependente da criatividade por bem mais de meio século. Sem revolucionar a linguagem ou ter uma assinatura tão marcante quanto a do gênio carioca, suas obras mais inspiradas são das primeiras três décadas de trabalho (esse aspecto também se aplica a Niemeyer, aliás). Ainda assim, Gasperini merecia ser bem mais reconhecido. Na arquitetura brasileira, o status das obras para governos é ainda muito superior ao das privadas (ironicamente, 90% de qualquer cidade, com exceção de Brasília, é formada por construções não-governamentais). Gasperini fez algumas obras públicas, mas é parcela menor do trabalho do escritório, como o belo Auditório Claudio Santoro, em Campos do Jordão, o Parque da Juventude e a Biblioteca São Paulo, no recinto do antigo Carandiru; e o já citado Tribunal de Contas.
 
Como quase toda arquitetura de excelência depende de clientes ousados e sofisticados — e de legislação que permita ir além do feijão com arroz — algumas das obras corporativas do escritório se ressentem das regras tolas paulistanas (e da inspiração nos subúrbios americanos de quem as encomendou), que fizeram muitas dessas torres terem uma relação pobre com a calçada. 
 
Para quem caminha no Itaim, a Infinity Tower entrega apenas uns degraus para os pedestres, um gramado e um acesso para os automóveis como destaque (o oposto do que a urbanista americana Jane Jacobs defendia, os “olhos na rua”). Nem uma vitrine, umas mesinhas, uma janela ou terraço que interaja com quem insiste em caminhar. Mesmo no Rochaverá, a grande praça felizmente sem grades ou muros, ainda é introvertida, pensada mais para um campus isolado do que para interagir com os vizinhos. Ainda assim, esses projetos são muito superiores aos do entorno. O escritório corrigiu essa tendência com a sede do InovaBra, o hub de startups do Bradesco, que implantou uma bem-vinda passarela entre a Avenida Angélica e a rua da Consolação, generosidade urbana ainda rara nas últimas décadas.
 
Gasperini, ao contrário de vários outros contemporâneos, nunca se submeteu a clientes menos sofisticados que pediam para arquitetos do mercado projetos em estilos neobarroco, neoclássico, neocolonial ou outros pastiches mais apropriados a parques de diversão ou a Las Vegas. Esses princípios e a renovação constante são importantes de se sublinhar nessa despedida.
 
Resgatar a memória de Gasperini nos faz lembrar de muitas peças em falta para se construir boa arquitetura na cidade: talentos com muita milhagem, abertura para o mundo, a realização de concursos que saem do papel e compromisso, também estético, com o espírito da época.
 
Raul Juste Lores é editor da Veja São Paulo e autor de “São Paulo nas Alturas” (2017, Editora Três Estrelas).