Emanoel Araújo, cuja vida múltipla como gravurista, escultor, curador e gestor fez dele um dos homens mais influentes da cultura brasileira, morreu essa madrugada em São Paulo depois de um infarto fulminante.
Ele tinha 81 anos.
Como gestor, Emanoel fez a Pinacoteca de São Paulo mudar de patamar e – ainda mais perto de seu coração – fundou em 2004 o Museu Afro Brasil, que debate a formação da identidade brasileira a partir do olhar e da experiência do negro.
“O Museu Afro Brasil era o filho de Emanoel,” Guilherme Assis, galerista do artista, disse ao Brazil Journal.
Já consagrado no País, o artista baiano estava sendo descoberto em todo o mundo. Colecionadores internacionais e museus como a Tate de Londres, o San Francisco MOMA, a LACMA de Los Angeles e o Guggenheim recentemente adquiriram obras suas, e a Jack Shainman, uma galeria novaiorquina focada em artistas da Diáspora Africana, prepara uma exposição sua para janeiro de 2023.
A morte vem num momento em que as obras de Emanoel começavam a chegar até ao mundo pop. Duas de suas esculturas apareceram ano passado junto a uma tela de Jean-Michel Basquiat num comercial da Tiffany & Co. estrelado por Beyoncé e Jay-Z.
Emanoel Alves de Araújo nasceu em 15 de novembro de 1940 em Santo Amaro da Purificação.
Segundo um amigo, sua vocação para a arte foi provavelmente influenciada pelo pai, um ourives de profissão.
Aos 17 anos, Emanoel fez sua primeira exposição ao lado do amigo Caetano Veloso, que também era artista plástico naquela época.
“Caetano é um exímio desenhista e sempre diz que me ensinou a desenhar e eu o ensinei a cantar,” disse certa vez numa entrevista.
Emanoel começou a cursar Belas Artes na Universidade Federal da Bahia, mas, pressionado a trabalhar, não chegou a terminar o curso.
Em 1963, trabalhou com Lina Bo Bardi na exposição Civilização do Nordeste, no MAM da Bahia – o que lhe abriu caminho para expor em grandes galerias do Rio e de São Paulo nos anos seguintes. No início dos anos 70, foi aos Estados Unidos a convite do Departamento de Estado e conheceu museus de arte americana e afro-americana de costa a costa.
Essa viagem foi fundamental para entender melhor como os museus americanos se organizavam. Nasceu aí seu interesse pela gestão e curadoria.
Em outra viagem importante – à Nigéria, nos anos 70 – teve o seguinte diálogo com Gilberto Gil, que também visitava o país.
“O Gil me perguntou: ‘O que você veio fazer na África?’ Eu respondi: ‘Vim ver a África’. E ele [Gil] me disse: ‘Eu vim colher minhas raízes’. Aí respondi: ‘Você se enganou, suas raízes estão na Bahia, não aqui’. Mas o que eu queria dizer é que aquilo era tão distante da gente que o mais próximo era a Bahia. Nós não sabíamos da África, como os africanos não sabiam de nós.”
De 1981 a 1983, Emanoel dirigiu o Museu de Arte da Bahia, em Salvador. “O museu estava em mau estado, a reforma durou um ano e depois de pronta eu saí. Durante esse período, fiz exposições importantes: Os 400 Anos do Mosteiro de São Bento, Escola Baiana de Pintura, África Bahia África, quando eu comecei a desenvolver essa pesquisa.”
No final daquela década, concebeu A Mão Afro-Brasileira – Significado da Contribuição Artística e Histórica no MAM de São Paulo, uma exposição épica que gerou um dos livros mais importantes para a cultura brasileira.
Convidado a dirigir a Pinacoteca do Estado, o mais antigo museu de São Paulo, Emanoel sofreu uma enxurrada de críticas. Pessoas públicas e até supostos amigos do artista enviaram um abaixo-assinado ao Governador Luiz Antonio Fleury, questionando, na prática, como um baiano iria dirigir a Pinacoteca.
Emanoel bateu de volta: “E ainda é preto e homossexual.”
A resposta calou a boca de muitos, e o indicado assumiu o cargo. Não havia tempo a perder: a Pinacoteca estava abandonada e decadente.
Amigo de Paulo Mendes da Rocha, Emanoel chamou-o para pensar uma ampla reforma. Também conseguiu apoio de banqueiros e empresários para exposições importantes, como Rodin em 1995.
Sua gestão de 10 anos dividiu a história da Pinacoteca em A.E. e D.E. (antes e depois dele): o museu hoje tem um projeto arquitetônico premiado e um programa artístico impecável, tocado por seus sucessores.
Homem de vasta cultura e muito estudioso, Emanoel amava todos os tipos de arte e convivia com a elite política, financeira e intelectual do País. Era um trator que fazia as coisas acontecerem.
Tinha um temperamento forte e não media palavras, o que levou o Correio da Bahia a adjetivá-lo de “genial e genioso” em seu obituário.
Dizia o que pensava de forma direta – e muitas vezes publicamente, como o fez em artigos polêmicos publicados em jornais. Não agradava a todos, mas era fiel às suas convicções e leal aos inúmeros amigos.
A década de trabalho na Pinacoteca o consumiu; foi quando teve seu primeiro infarto. Deixou o cargo para uma cirurgia e prometeu ficar longe da vida pública – mas não cumpriu a promessa.
Em 2004, a então prefeita Marta Suplicy queria criar um museu dedicado à história negra. Como Emanoel era conhecido por colecionar artistas negros dos séculos 18 a 20, seu nome era perfeito para o projeto.
No mesmo ano, nascia o Museu Afro Brasil, com Emanoel doando quase 4 mil obras do seu acervo pessoal. “O Museu Afro Brasil é meu projeto de vida. É minha obrigação ideológica,” costumava dizer. Diversas vezes precisou colocar do próprio bolso para arcar com as despesas do museu.
Guilherme Assis, seu galerista, disse que na última venda importante de uma obra sua para o exterior, Emanoel comemorou dizendo que usaria parte do dinheiro para a nova exposição do Museu Afro. “Ele se realizava acompanhando as visitas das escolas municipais ao museu”, disse Guilherme.
O acervo do Museu Afro Brasil resgata artistas pouco conhecidos. Apesar de sua relevância para a cultura, ainda é pouco visitado – mas Emanoel estava pronto para esperar a validação da História.
“Quando cheguei à Pinacoteca, a instituição já tinha completado 90 anos, e era aquele desastre, uma pocilga,” Emanoel disse certa vez, no estilo áspero que lhe era peculiar. “No segundo dia choveu, e aquilo parecia Veneza. Então, acho que preciso completar 90 anos aqui também no Museu Afro Brasil.”