É no cemitério São João Batista – onde teve seu corpo enterrado na tarde de terça-feira – que o músico Jards Macalé terá sua última morada.

O São João Batista, tradicional campo-santo em Botafogo, é costeado pela Rua Real Grandeza – a mesma citada na música homônima em que Macalé se conformava com seu destino de anjo torto, inspirado por um de seus primeiros parceiros, o poeta Torquato Neto, e anunciava: “Desde o berço conservo o mesmo endereço/Eu moro na Rua Real Grandeza”.

A composição é a segunda faixa do disco/manifesto Aprender a Nadar. Lançado em 1974, o LP marcava o início da produção artística de Macalé com outro poeta da mesma geração, Waly Salomão. Juntos os dois inauguravam uma nova proposta estética, a “morbeza (morbidez + beleza) romântica”, cujo resultado artístico se mostrou afinado: a parceria deu origem a 11 composições.

Nelas, a morte era um tema constante.

Assim, o último suspiro de Jards Anet da Silva – “Ou melhor, da Selva”, como também se apresentou em outra composição – ocorrida no final da tarde da última segunda-feira pode ter surpreendido a muitos, não a ele. Macalé sempre flertou com a morte.

Em fevereiro de 2018, o músico passou vários dias internado na UTI de um hospital de São Paulo em decorrência de uma infecção pulmonar. Sobreviveu e continuou ainda mais ativo, gravando novas composições e fazendo shows por todo o Brasil.

Agora, os mesmos problemas pulmonares fizeram com que ele fosse novamente internado. Com 82 anos, Macalé sofreu uma parada cardíaca e não resistiu. “Jards Macalé nos deixou hoje. Chegou a acordar de uma cirurgia cantando Meu Nome é Gal, com toda a energia e bom humor que sempre teve,” dizia a mensagem publicada nas redes sociais do músico.

Se agora Macalé lutava para viver e se mostrava de bem com a vida, em outros tempos a situação foi bem diferente.

Em meados dos anos 80, ele, sentindo-se isolado e sem perspectiva, chegou a pensar em suicídio. Como pretendia fazer de seu gesto um ritual, passou a ligar para os amigos como forma de despedida. Quando parecia preparado e próximo de consumar o tresloucado gesto, ligou para João Gilberto. E tudo mudou.

O mestre da bossa nova, sem saber das intenções de Macalé, o convidou para que interrompesse a ligação e fosse ao seu apartamento. A partir de então, num clima relaxado e intimista, Macalé foi hipnotizado por João Gilberto – e desistiu de morrer.

Surpresas e mistérios sempre estiveram presentes na vida de Jards Macalé, essa mistura de Moreira da Silva com John Lee Hooker que se transformou em um dos artistas mais originais da música brasileira.

Nascido em 3 de março de 1943 no tradicional bairro da Tijuca, na Zona Norte do Rio, Macalé – o apelido está ligado a um dos piores jogadores do Botafogo dos anos 50 – veio de um lar musical. Valsas e modinhas eram frequentemente tocadas pela mãe, Lígia, uma hábil pianista, dona de uma voz afinada e muito elogiada por João Gilberto. O pai, um rígido militar, se soltava um pouco quando pegava o acordeom durante as festas.

Mais tarde, Macalé aperfeiçoou seus conhecimentos musicais tendo aulas com os maestros Severino Araújo e Guerra-Peixe, além de ter sido aluno do violonista Turíbio Santos. Com esta base, passou a escutar com maior interesse a bossa nova de Tom Jobim e de João Gilberto, e incorporou também conhecimentos de outras vertentes, como os sambas de Baden Powell, Dorival Caymmi, Noel Rosa e Nelson Cavaquinho.

Primeiro amigo carioca de Caetano Veloso – tão logo o baiano se mudou para o Rio – Macalé ficou próximo também de cantoras que seriam decisivas em sua trajetória, como Elizeth Cardoso (que gravou dele Meu Mundo É Seu), Nara Leão (com Amo Tanto) e Maria Bethânia.

Confundido com o tropicalismo de Caetano e Gil – com quem teria tantas idas e vindas – Macalé buscaria um caminho próprio em 1969, no Festival Internacional da Canção, com a performática Gotham City, em que alertava: “Cuidado! Há um morcego na porta principal!”. 

Sua mensagem não foi bem compreendida, e ele recebeu uma das maiores vaias da história dos festivais.

Sua grande virada se daria no começo dos anos 70, quando, ao lado de Gal, se transformou em um dos símbolos da turma que se reunia nas dunas do barato, o trecho de praia em Ipanema tomado pelas obras do emissário submarino, de onde brotava muito da melhor música feita no Brasil naquela época.

Com Waly, Macalé compôs Vapor Barato, seu maior e mais constante sucesso, mas sempre deu a impressão de valorizar mais o que ambos haviam estruturado com a “morbeza romântica”, uma mistura de dor-de-cotovelo com cornitude – como percebeu o poeta Augusto de Campos – que alternava os ensinamentos da bossa nova com o estilo melancólico dos velhos sambistas. Em resumo, uma Fossa Nova.

Em mais de seis décadas de carreira, Macalé fez de tudo um pouco. Como seus anseios transcendiam a música, ele se aproximou da vanguarda das artes plásticas, sendo parceiro de Lygia Clark e Hélio Oiticica, e também do cinema novo, igualmente com parcerias com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos.

Politizado, lutou pelos direitos autorais, ganhou fama de maldito nas gravadoras e mobilizou colegas para viabilizar o espetáculo Banquete dos Mendigos.

Show coletivo idealizado e produzido em 1973 por Macalé e Xico Chaves, Banquete dos Mendigos reunia o próprio Macalé com Chico Buarque, Milton Nascimento, Luiz Melodia, Maria Bethânia, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Raul Seixas, Luiz Gonzaga Jr. e Jorge Mautner.

As apresentações eram pontuadas pela leitura da Declaração dos Direitos do Homem feita pelo poeta Ivan Junqueira, então assessor de imprensa da ONU no Rio.

O espetáculo, assistido por cerca de três mil pessoas que se aglomeraram no Museu de Arte Moderna em dezembro daquele ano, ocorreu sem incidentes e teve quase a totalidade das apresentações registradas com a intenção de que fosse lançado um álbum duplo. Apesar da enorme repercussão, Macalé viu o projeto ser proibido pela Censura. O disco só chegaria às lojas quase uma década depois.

Nos últimos anos, mais calmo e sereno – sem nunca perder o humor anárquico – Macalé parecia distante daquele intérprete de Anjo Exterminado, composição sua dos anos 70, em que ele, vigiado pela ditadura, falava em “Fecho janelas sobre a Guanabara/Já não penso mais em nada/Meu olhar vara vasculha a madrugada”.

Sua fase recente tinha mais a ver com outra música da mesma época, Mal Secreto, em que ele era capaz de dizer “Se você me pergunta/Como vai?/Respondo sempre igual/Tudo legal”. Ainda assim, continuava fiel a um ensinamento contido na mesma canção: “Não preciso de gente que me oriente”.