Não acreditem na maior parte dos obituários que vão dizer que Jaguar morreu aos 93 anos. É mentira!
Foi uma morte precoce de um talento que tinha apenas 22 anos – até porque Sérgio Magalhães Gomes Jaguaribe foi original inclusive na escolha da data de nascimento: não um dia qualquer, mas o raro e bissexto 29 de fevereiro.
O ano, 1932, ele concordou em dividir com outros gênios do traço, como os argentinos Mordillo e Quino, e o brasileiro Ziraldo, seu parceiro de aventuras jornalísticas e ipanemenses.
Jaguar estava internado com pneumonia há três semanas, e sua morte foi confirmada na tarde deste domingo por Celia Regina Pierantoni, sua mais constante e fiel parceira nas últimas décadas.
Para a quantidade de álcool que consumiu e pelas noitadas que atravessou, Jaguar viveu muito. E viveu com qualidade. Quem poderia se orgulhar de ter convivido tanto e tão bem com figuras como Danuza Leão, Leila Diniz, Tom Jobim, Chico Buarque, Scarlet Moon, Nara Leão, Glauber Rocha, Jô Soares, Antônio Pedro, José Lewgoy… Isso sem falar nos colegas do Pasquim, como Tarso de Castro, Martha Alencar, Ziraldo, Millôr Fernandes e Sérgio Cabral.
Dando rosto ao Sig – e corpo e alma ao Pasquim – Jaguar não apenas renovou o desenho de humor, como também revolucionou a imprensa brasileira. À frente do hebdomadário, ele foi o único a estar no início e no fim dessa louca aventura.
Jaguar vinha de longe.
Sua estreia profissional se deu na revista Manchete em 1952, uma época em que ele ainda precisava dividir a dedicação aos desenhos com um estável emprego de escriturário no Banco Brasil. Mas depois da passagem pela revista dos Bloch, Jaguar não pararia mais.
Foi cartunista da revista Senhor, colaborou com outras publicações como a Revista Civilização Brasileira e a Revista da Semana, esteve na Pif-Paf (de Millôr Fernandes) e trabalhou nos jornais Tribuna da Imprensa e Última Hora.
Foi nesta redação, do jornal comandado por Samuel Wainer – onde atravessaria os primeiros anos do Golpe de 64 e a chegada do AI-5 – que Jaguar ficou íntimo de Tarso de Castro e de Sérgio Cabral. O Pasquim começava a nascer ali.
O nome do jornal foi inventado por ele e, como chegou a admitir em uma entrevista anos depois, era a maneira de se proteger de uma possível esculhambação externa. “Já que vão nos chamar de pasquim vamos antes usar o nome. Terão de inventar outros nomes para nos xingar”.
Além do nome, o Pasquim teria um símbolo, já com destaque na primeira capa e também inventado por Jaguar. O Sig era um rato debochado, que interferia com seus comentários sarcásticos em quase todas as matérias, artigos, entrevistas e até nos anúncios.
Ele seria a presença mais constante durante as mais de duas décadas de existência do jornal, mas nascera quase ao acaso: o personagem havia sido criado a pedido de uma marca de cerveja que seria lançada com uma campanha tendo um bar como cenário.
Sig logo ganharia irmãos: Jaguar foi também o criador de Gastão, o vomitador; Bóris, o homem-tronco; Capitão Ipanema; as aranhas Jacy e Hélio, e a Anta de Tênis.
Aos poucos, as revoluções propostas pelo semanário começavam a ganhar corpo. Era subversivo sem ser engajado politicamente. Era anárquico e engraçado. Era de fácil leitura sem ser banal. Era genialmente simples, sem ser simplório.
O melhor exemplo que resumia tudo isso eram as famosas entrevistas. Os entrevistados eram interessantes, mas o melhor ainda era o formato, o que dava a impressão de que o resultado era muito mais o de um bate-papo do que o de um questionário.
Até nisso o acaso foi decisivo – e novamente Jaguar foi importante. A opção por apresentar entrevistas de forma coloquial e descontraída não havia nascido de uma estratégia editorial, e sim da perigosa combinação da preguiça com a pressa.
Coube a Jaguar degravar a fita com a primeira entrevista e passá-la para o papel. Feita a tarefa, Jaguar foi para a gráfica do Correio da Manhã, onde o jornal deveria ser impresso, e nada de ter notícias de Sérgio Cabral ou de Tarso de Castro, os dois que teriam a obrigação de dar à entrevista seu formato final.
Faltando menos de duas horas para imprimir o jornal, os dois chegaram, leram as laudas e não se conformaram com a falta de um copidesque. Jaguar argumentou que aquela era a única maneira que sabia fazer e que não dava tempo para mudar, já que uma festa programada para o lançamento do jornal estava prevista para aquela noite.
Assim, uma das grandes sacadas do Pasquim acabava de ser criada, sem planejamento algum. “Tiramos o terno e a gravata das entrevistas,” definiria Jaguar.
O jornal, que vivia sob a mira afiada dos censores e dos órgãos de repressão, logo depois cairia numa armadilha, em novembro de 1970.
A razão para que a situação endurecesse e levasse a uma atitude extrema por parte da ditadura foi tão banal quanto simbólica: uma charge de Jaguar tendo como base o quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, e que ridicularizava Dom Pedro I, mostrando-o em lugar de destaque e gritando – numa colagem feita por Jaguar – “Eu quero mocotó!!”
Quase todos foram presos.
A partir de então o Pasquim racharia, com constantes brigas entre seus integrantes e muitas saídas. Mas um racha maior ocorreria em 1982.
Reza a lenda que durante os meses que antecederam a eleição daquele ano para governador do Rio, Jaguar (apoiador de Leonel Brizola, do PDT) e Ziraldo (de Miro Teixeira, do PMDB) fizeram um acordo: quem ganhasse a eleição ficava com o jornal.
Era a última chance de salvar o Pasquim e alavancar as vendas, que, àquela época, rondavam os irrisórios 20 mil exemplares, menos de 10% do que chegou a ser vendido nos dias de glória.
Jaguar ganhou, mas sem apoio – nem de Brizola, nem de ninguém – pouco pôde fazer.
Jaguar viu o Pasquim surgir, crescer, viver sua fase mais esplendorosa, e começar a decair e morrer. Seus ex-companheiros foram ficando para trás. Com alguns manteve amizades; com outros rompeu para sempre. Chegou a tornar-se uma figura patética, acreditando na permanência do jornal quando ninguém mais acreditava – a começar pelos leitores, que foram atrás de novas e ousadas publicações.
Como o japonês que mesmo depois de encerrada a guerra se negava a acreditar na derrota e seguia empunhando suas armas solitariamente, Jaguar foi o único da primeira turma a ficar até o fim. Por mais de duas décadas, o Pasquim foi sua razão de viver, chegando até mesmo a morar na redação durante um período. Sig, contrariando o velho ditado náutico, também foi uma exceção: um rato que se negou a abandonar o navio.
Com o fim do Pasquim, Jaguar tornou-se editor de A Notícia, um jornal popularesco que explorava manchetes escandalosas. Durou pouco no cargo e foi convidado a assinar uma coluna em O Dia. Na coluna, mais escrevia (bem) do que desenhava, usando a memória que lhe falhava para lembrar de antigas histórias de Ipanema e de seus personagens. Os textos acabaram dando origem a dois livros: Ipanema, em 2000, e Confesso que Bebi: Memórias de um Amnésico Alcoólico, em 2001, espécie de roteiro afetivo dos bares da cidade, de lugares chiques a simpáticos pés-sujo.
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Aqui, uma referência bem pessoal. Em 2021, quando escrevi um livro sobre o Pasquim – Rato de Redação: Sig e a História do Pasquim, decidi não entrevistar nenhum dos remanescentes, até porque eu já tinha um bom conhecimento prévio do que eles poderiam falar. Foquei apenas no jornal.
Jaguar depois me ligou. Em 1º de março de 2022, um dia depois de completar 90 anos, me telefonou para dizer que havia adorado o livro, que o relato estava completo e perfeito e que eu devia ser bem mais velho do que a idade que admitia (55 anos) para conhecer tantos personagens e tantas histórias.
Conversamos por 20 minutos e a ligação se encerrou com ele prometendo que iria ao lançamento no Rio. Trinta dias depois, cumpriu a promessa. Antes de desligar, perguntou se poderia me mandar um desenho. Claro que aceitei. A ilustração que desde aquele dia protege meu local de trabalho agora ilustra este obituário.
Obrigado, Jaguar. Pena que você morreu tão cedo.