Das muitas maneiras como expressou em vida sua arte e seu jeito único de pensar a existência, Hermeto Pascoal também imaginou a morte, e ontem, 55 anos depois do registro, a previsão se mostrou tristemente verdadeira e adequada.
Num disco lançado em 1970, Hermeto escreveu Velório. Como recomenda o título, a composição é pesada e soturna. Abre com flautas graves, sons de garrafas e vozes que lembram o clima de rezas e o choro das carpideiras ao fundo.
Porém, logo, nessa faixa longa de mais de oito minutos, o clima se modifica e os ouvidos são invadidos pelos sons de cordas, e tudo deságua em um tema caracteristicamente nordestino. É quase um ensinamento: a morte se celebra com a exaltação da vida.
A capa deste mesmo disco – um álbum pouco conhecido, produzido nos Estados Unidos pelo casal Airto Moreira e Flora Purim – em que Hermeto aparece deitado cercado pelos mais variados instrumentos, também é um resumo da delirante vida que esse alagoano de Lagoa da Canoa, distrito de Arapiraca, levou desde que nasceu em junho de 1936 até morrer ontem, aos 89 anos.
A notícia foi confirmada pelas redes sociais, em nota assinada pela equipe e a família do artista, que não informaram a causa da morte.
Portador de albinismo e com dificuldade para enxergar, o menino Hermeto foi poupado da vida na roça, onde seus pais trabalhavam. O interesse pelos sons ouvidos na natureza e a capacidade de se adaptar a qualquer instrumento (de início a sanfona e o pandeiro) moldaram os primeiros anos e definiram o que Hermeto faria pelo resto da vida.
Nessa alquimia sonora, ele passou a ser reconhecido pela alcunha que o acompanharia por quase toda a existência: Bruxo. O apelido ganharia ainda maior dimensão pela figura próxima à de um profeta: barbas e cabelos longos, roupas largas e coloridas, chapéu protegendo a cabeça.
Mas essa figura messiânica surgiria bem depois de o adolescente Hermeto ter abandonado o interior de Alagoas, se mudado para Pernambuco e se casado, em 1954, com Ilza da Silva, com quem viveu por 46 anos e com quem teve seis filhos (Jorge, Fabio, Flávia, Fátima, Fabiula e Flávio). Já no Rio, no final dos anos 50, ele descobriria a música profissional ao passar por um circuito de bares e boates até se aproximar de músicos mais representativos, como o violinista Fafá Lemos e o flautista Copinha.
O fim da década seguinte já o encontraria como integrante – tocando piano e flauta – do Quarteto Novo, grupo completado por Theo de Barros (contrabaixo e violão), Heraldo do Monte (viola e guitarra) e Airto Moreira (bateria). Juntos eles fizeram uma pequena revolução na música brasileira com a proposta, ousada para a época, de misturar ritmos nordestinos, em especial o baião, com arranjos jazzísticos.
Para quem sabia de música, como Edu Lobo e Geraldo Vandré, a proposta foi bem compreendida e o Quarteto Novo acompanhou Edu e Marília Medalha na apresentação da música Ponteio, que venceu o 3º Festival de Música Popular Brasileira.
A ida de Airto Moreira para os Estados Unidos, em 1969, antecipou o final do grupo e permitiu que Hermeto logo depois viajasse também. Já nos EUA, Hermeto conheceu Miles Davis, que o convidou a participar do disco Live Evil.
Hermeto aparece em duas faixas: assobiando em duo com o trompete assurdinado de Miles em Little Church; e ao piano elétrico e vocal em Nem um Talvez. As duas faixas, claramente composições de Hermeto, foram creditadas no disco ao próprio Miles. Reza a lenda que Hermeto teria se vingado de Miles no ringue. Desafiado pelo trompetista para uma luta de boxe, Hermeto acertou um soco certeiro no meio do rosto do trompetista, que teria ficado desconcertado pelo estrabismo do Bruxo.
A conduta pouco correta de Miles Davis não impediu Hermeto de ampliar seus contatos. Raro exemplo mundial de alguém que conseguia tirar som de qualquer instrumento – fossem teclados, cordas ou metais – Hermeto ainda inventava improvisos extraindo sonoridade de chaleiras, panelas, bacias d’água, arames e até porcos e marrecos.
Respeitado por jazzistas como Ron Carter, Chick Corea, Stan Getz e John McLaughlin, Hermeto criou uma escola única.
Era fiel aos músicos que o acompanhavam, mantinha as formações musicais por anos (com instrumentistas como Jovino Santos Neto, Nenê, Arismar, Itiberê Zwarg), gravava intensamente no Brasil e no exterior, e deixou registros importantes como A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973), Slaves Mass (1977), Zabumbê-Bum-Á (1979) e Cérebro Magnético (1981). Até instrumentos como o sintetizador Hermeto foi capaz de domar. Dizia que não tinha medo de ir apertando os botões em busca de novos sons.
Sua criatividade era inesgotável, assim como sua imaginação. Compunha de maneira prolífica e chegou ao ponto de garantir ser capaz de escrever uma composição por dia – e foi assim que inaugurou o Calendário do Som, projeto em que registrou uma música inédita para cada dia de um ano.
Com tamanha produção, era natural que suas apresentações se estendessem por horas. Para Hermeto, a música não podia ser aprisionada pela rigidez do relógio, não devia ficar restrita a tempos limitados, tampouco espaços, já que muitas vezes ele abandonava o palco e se misturava à plateia. A música era um sentimento e deveria fluir livre, aberta às transformações que fossem surgindo, com total liberdade para os improvisos.
Hermeto Pascoal rompeu barreiras, ampliou estilos musicais, subverteu o que era ensinado nos conservatórios e compôs – buscando inspiração até no silêncio. O mesmo silêncio agora se faz necessário.
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