Das muitas Angelas que a persona inquieta de Angela Maria Diniz Gonçalves encarnou em 75 anos de vida – encerrada hoje de uma longa agonia – ela foi fiel a todas, em especial à sua melhor versão: Angela Ro Ro.
A cantora de voz grossa, estilo abusado e repertório único abriu muitos caminhos. Quem soube compreendê-la, saiu ganhando.
Angela Maria Diniz Gonçalves nasceu em dezembro de 1949 e teve uma adolescência típica da zona sul carioca dos anos 60. Estudou piano clássico por influência familiar, habituou-se a ouvir bossa nova e, mal havia alcançado a maioridade, já era figurinha fácil em rodas boêmias e mesas de bares. Sua capacidade de entornar litros de qualquer bebida e de circular com desenvoltura pelas mais variadas turmas fizeram de Angela um dos símbolos de sua geração.
Assim, ela desbundou. Amiga de Glauber Rocha – uma década mais velho do que ela e já um monstro do cinema – Ro Ro (o apelido vinha de família, por causa da voz rouca) não sabia o que queria fazer da vida e foi descobrir caindo na estrada.
Passou uma temporada com o cineasta na Itália, e de lá – ainda sem nenhuma garantia de qualquer coisa – seguiu para Londres.
Reza a lenda que foi Glauber quem a apresentou a Caetano Veloso, à época exilado na Inglaterra. Caetano aceitou convidá-la para participar de uma faixa de Transa, o álbum que estava gravando para o mercado inglês. Angela participa de Nostalgia (That’s What Rock’n Roll Is All About) tocando gaita de boca. A gravação foi quase um bico, ficou restrita ao grupo de amigos e não lhe deu uma grana que lhe permitisse abandonar as tarefas menos glamurosas, como fazer faxina em um hospital ou lavar pratos em um pub.
De volta ao Brasil, entrou num circuito de bares, casas noturnas e quaisquer lugares onde pudesse apresentar seu repertório – que ia de Nina Simone a João Donato, de Janis Joplin a composições próprias.
Convidada pelo produtor Paulinho Lima – um dos primeiros a sacar seu talento e um amigo por toda a vida – Angela gravou seu primeiro disco em 1979 pela Polygram (hoje Universal) e de cara emplacou um petardo, Amor Meu Grande Amor, composta em parceria com a letrista Ana Terra.
Não parou mais.
Foi elogiada pela crítica, passou a ser gravada por nomes como Maria Bethânia (Gota de Sangue) e Ney Matogrosso (Balada da Arrasada) e manteve uma constante agenda de gravações e shows, em que pese durante um bom período ter frequentado também as páginas policiais, em especial por causa de seu rumoroso caso com Zizi Possi.
Como a dor também inspira, Angela transformou o escândalo em disco (com o mesmo nome, óbvio) e dedicou à ex-parceira a faixa Fraca e Abusada.
Viriam ainda outros sucessos, como Só Nos Resta Viver, Simples Carinho (de João Donato e Abel Silva) até Angela começar a ser engolida pelo personagem.
As notícias deixaram de lado a pianista inspirada, a ótima compositora (numa linha que a ligava a Maysa e Dolores Duran) e passaram a focar na figura polêmica e criadora de casos. Ainda assim, o estilo solto e desaforado foi fundamental na formação de jovens artistas – Cazuza e Cássia Eller, para ficar em dois exemplos.
A partir dos anos 90, as gravações ficaram mais esparsas, e os shows diminuíram. Como bem lembrou o crítico musical Juarez Fonseca, Angela Ro Ro era uma mistura de Maysa (de quem ela regravou Demais, de Tom Jobim e de Aloysio de Oliveira) com Janis Joplin. Essa combinação explosiva pode ser genial, mas quase nunca é bem assimilada.
Ainda assim, Angela permaneceu ativa e influente – ouvida por quem sabia que o que ela oferecia não era para gostos medianos. Todas as cantoras – denominadas naquele tempo como “ecléticas” e que se destacavam por não se ligarem a apenas um estilo – devem muito a ela. Uma lista que começa com Marina, passa por Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Cássia Eller, e vai até Ana Carolina e Maria Gadu.
Desbragada, irônica e desaforada, Angela soube ser romântica (Se Você Voltar, com Antonio Adolfo), agressiva (Querem nos Matar), melancólica (Fogueira) e até otimista (contrariando muitas de suas manifestações que poderiam ser tomadas como suicidas, ela escreveu que “A vida é bela / Só nos resta viver” bem antes de Fernanda Torres decretar que a vida presta).
Mas mesmo bela, sua vida era descontrolada – e com o tempo cobrou seu preço.
Angela passou a ter problemas financeiros (os amigos se cotizaram para ajudá-la) e, há três meses, foi internada em um hospital – de onde não mais saiu com vida. Permaneceu fiel à Angela exagerada até o fim.
Em Demais, ela cantou: “Todos acham que eu falo demais / E que eu ando bebendo demais / Que essa vida agitada / Não serve pra nada”. Depois, compôs seu próprio manifesto, Quero Mais, em que dizia: “Para que eu não enlouqueça / Me rouba a razão / Para que eu não adoeça / Me mata de paixão”. Bem à sua maneira, sua prece foi atendida.