Horas depois da Ford anunciar o fechamento de suas fábricas no Brasil, um vídeo de Marcos Lisboa começou a viralizar nas redes sociais.

Num evento da indústria automobilística, o economista e presidente do Insper detonava as próprias montadoras por compactuar com o modelo de subsídios adotado pelos governos brasileiros nos últimos anos, e avisava: não vai funcionar.

11158 c3a75569 e6c6 f6d2 739d f1c5cee5e735O vídeo era de 2016, mas envelheceu bem. 

Nesta conversa com o Brazil Journal, Lisboa faz a autópsia de uma política industrial fadada ao voo de galinha e que mantém o País alijado das cadeias de suprimento globais.

Ele também mostra exemplos de estímulos estatais que deram certo, como a criação da Embrapa e a PPP criada pelo Governo americano para acelerar o desenvolvimento da vacina para a covid. 

E, como ainda é um homem de fé, Lisboa insiste na agenda mínima (aquele básico que o País só vai fazer quando estiver no meio da próxima crise): reforma tributária, abertura da economia, fortalecimento das agências reguladoras e solidez fiscal.

Abaixo, trechos da conversa: 

Que lições podemos tirar da saída da Ford do Brasil? 

Isso não é uma coisa só da indústria automotiva. Vários setores da indústria estão com graves dificuldades, o Walmart já tinha ido, a FNAC foi embora, e a Sony já disse que vai fechar fábrica… Tem muita gente desistindo do Brasil já faz um tempo. Isso não é de hoje. 

O problema maior é o seguinte: o desenho da política industrial e a maneira com que o setor se desenvolveu nos últimos 15 anos foi absolutamente equivocado e estava fadado ao fracasso. Optou-se por tentar fazer no Brasil boa parte da cadeia produtiva — senão ela toda — sem ter escala para isso. Isso vale para a indústria automotiva, vale para a cadeia de petróleo, onde tentamos fazer todos os navios e plataformas aqui — de novo, sem ter escala.

No resto do mundo, as empresas compram as máquinas e equipamentos mais eficientes que estão disponíveis, porque o país A, B ou C faz isso melhor que os outros. E aí tem escala. A política do Inovar Auto (que o Governo criou e a indústria automotiva apoiou) fez o seguinte: “ou você tem a fábrica no Brasil ou você vai pagar muito mais imposto nos automóveis que importar.”  Aí as empresas tiveram que fazer fábricas no Brasil que eram muito pequenas, e comprar equipamentos no Brasil. Com escala pequena, naturalmente você fica ineficiente. 

Várias gerações de brasileiros foram criadas aprendendo que somos um país pobre porque somos uma economia baseada em commodities, e que o certo é ter indústria, porque indústria é que gera emprego. Isso já foi verdade e não é mais, ou nunca foi verdade?

Eu acho que tem várias confusões nesse argumento que o Brasil comprou. A primeira é o próprio conceito de indústria. A gente tem no imaginário que indústria é a grande produção. Mas o processo de produção foi muito desmembrado ao longo do século passado. Você separou a parte de concepção e de inovação da fábrica de montagem. 

Por exemplo: onde está a Apple? 

Tem uma parte de concepção e criação que está em Cupertino, que gera uma quantidade imensa de emprego e de renda. E tem fábricas de componentes do iPhone que estão espalhadas pelo mundo. As fábricas de determinados componentes estão em um país que é especializado nisso, outras em outro país especializado em outra parte. E aí é tudo montado na Índia, China ou outro lugar na Ásia. 

A ‘indústria Apple’ está espalhada. Mas qual é a parte que gera mais valor adicionado? É a parte da montagem do aparelho? Não, aquela é uma fábrica que gera uma margem mínima. Por isso mesmo, a parte de montagem da indústria foi se deslocando para países com custo de mão de obra e de logística baixos. 

Agora, a Apple é o quê: uma indústria ou um serviço? O primeiro ponto de confusão é esse, as pessoas confundem a indústria com a fábrica de montagem. Tem que separar essas duas coisas. Em vez de focarmos no que acontece em toda a cadeia da indústria, a gente fica focado em ter a montagem no Brasil. 

Qual a grande vantagem do comércio global? Você pode se especializar em algumas atividades. E daí não é agronegócio ou indústria, você se especializa em algumas etapas do processo produtivo. Seja você estando numa cadeia que começou no agronegócio ou na siderurgia, a ideia é que você se especialize em algumas atividades e ganhe competitividade nas etapas em que você está. Se torne muito eficaz na etapa em que está e compre dos demais países os produtos que eles fazem melhor que você. Isso permite o ganho de produtividade. 

A Embraer, por exemplo, é excepcional para conceber, desenhar e montar aviões de médio porte. Ela faz isso e compra vários equipamentos que ela utiliza de outros países, e com isso ela consegue ser competitiva. Agora, se você limitar as empresas a ter que fazer tudo dentro do seu território nacional, você não tem escala. Ainda mais no Brasil, onde várias das especificações e incentivos são para itens muito peculiares que o Brasil incentiva, como determinadas cilindradas de carros populares, por exemplo. 

Onde o Brasil poderia encontrar uma especialização em que ele possa participar? Ou é impossível se especializar em algo porque não temos educação, não temos engenheiros, matemáticos e cientistas suficientes?

Acho que é pior que isso.

O mundo era pobre no começo do século 19. Os países ricos eram bem mais pobres do que muitos países pobres de hoje. A renda média por habitante nos países ricos era equivalente a US$ 400 por ano, o que hoje é considerado linha de pobreza. Como se deu esse grande crescimento de produtividade e da qualidade de vida? Pela inovação, desenvolvimento de novas tecnologias, novos produtos e novos métodos de gestão. E de onde vem isso? Isso vem da competição… e na competição você não sabe o que vai dar certo. 

O Brasil fez a Lei de Informática nos anos 80 e apostou em desenvolver chips e em fabricar hardware. Foi outra aposta errada. O que acabou dando certo foram os softwares. As grandes empresas hoje não são empresas de hardware, são as de software. 

O que você está dizendo é que, em vez do formulador de políticas públicas — o Governo do dia — escolher setores e dizer ‘vamos nesse aqui’, ele deveria focar no que ele sabe fazer e no que ele pode fazer, que é logística, infraestrutura, educação…

Ele pode ir além disso. Vou dar dois exemplos. 

O primeiro é o do Brasil no fim dos anos 60 no agronegócio. O Brasil até aquela época tinha copiado o modelo americano para melhorar a produtividade. Nos EUA havia as grandes universidades do Meio Oeste, com muito conhecimento técnico. E aí professores e alunos visitavam as regiões rurais e explicavam para os agricultores como ser mais produtivos. O Brasil tentou fazer igual, mas no fim dos anos 60 ficou claro que não estava dando certo. O governo então montou um time de trabalho com economistas e engenheiros agrícolas, e eles chegaram à conclusão que o diagnóstico estava errado. O problema do Brasil não era que o agricultor não tinha acesso à técnica, era que não havia técnica adequada para muitos dos problemas de uma agricultura tropical, porque a nossa agricultura é diferente da temperada. 

Daí que surgiu a ideia de criar a Embrapa. Ela saiu deste grupo de trabalho, e a ideia era pesquisar e formar gente, porque nosso problema não era o acesso à tecnologia, mas que precisávamos de uma tecnologia nova. Aí o País formou muitos técnicos e cada centro da Embrapa tinha um problema para resolver. Isso — quem diria — deu muito certo. 

O segundo exemplo é o caso bem-sucedido da vacina nos EUA e em outros países, porque aqui no Brasil estamos nessa confusão. Como foi a estratégia americana no começo da vacina, em abril de 2020?  Eles montaram uma PPP e, como não se sabia qual vacina ia dar certo, eles olharam dezenas de tentativas e escolheram algumas. Para isso, usaram critérios como focar em abordagens diferentes e em empresas para as quais a vacina ia ser muito importante. A partir daí, fizeram arranjos diferentes para cada empresa. A lição disso é que, como você não sabe o que vai dar certo, você tem que apostar em vários cavalos. 

Como esses experimentos que deram certo — a Embrapa e a vacina — contrastam com a política industrial que adotamos no Brasil?

Nesses dois casos, o ponto de partida foi permitir a experimentação descoordenada, a experimentação independente. Permitir que vários caminhos diferentes fossem experimentados com os incentivos certos.

Já a política industrial brasileira faz o caminho contrário disso, o contrário do que fizemos na política agrícola. A política agrícola brasileira estimulou o desenvolvimento de tecnologias e deixou a concorrência e o experimentalismo independente avançar. Já a política industrial brasileira escolheu o caminho. Ela falou: ‘vou fazer navios’. Como você sabe que o Brasil vai ser eficaz em fazer navios? Você não sabe! Você desenvolveu conhecimento prévio para isso? O grande fracasso da política industrial brasileira é achar que basta você montar a fábrica que a produtividade vem com o tempo. É achar que, como você montou o estaleiro, automaticamente você aprende a fazer bem navios… 

Essa atitude desconsidera o problema de escala, que é fundamental para o ganho de produtividade, e desconsidera o fato de que é impossível fazer tudo bem. Eventualmente, por razões específicas, você vai ter uma vantagem em determinada atividade, como foi o caso da Embraer, mas não vai ter em outras.

Aí entra a vantagem do comércio global: quando você está comercializando com o mundo, você tem acesso ao que os outros estão fazendo de melhor e você pode se especializar naquela atividade específica que você faz muito bem. Mas no Brasil nós não temos o benefício do que o resto do mundo faz de melhor, e isso atrasa todos os setores. 

O mundo tem um problema estrutural de emprego? A falta de emprego vai ser pior no futuro do que é hoje? É algo estrutural da mudança para uma economia digital?

Essa substituição de trabalhadores por máquinas, processos e sistemas não é de hoje. O mundo do século 19 iluminava as ruas com óleo de baleia. Veio o petróleo, veio a energia elétrica, e os baleeiros ficaram desempregados. Veio o carro — as carruagens sumiram. Esse processo é natural. 

Esse mundo de experimentação, de competição, traz como benefício ganhos de produtividade imensos e aumento da renda, que é o que temos experimentado nos últimos 200 anos. Mas esse mundo também traz um ônus: a necessidade do mercado de trabalho muda com a tecnologia. Se as novas gerações chegam no mercado de trabalho mal preparadas, elas sofrem com as novas tecnologias.  

Esse problema é ainda maior no Brasil. Cada vez mais o capital humano e a qualificação da mão de obra são valorizados no mundo e nós não preparamos a nossa sociedade. O Brasil descuidou da educação de qualidade e o resultado disso é que muitos brasileiros terão empregos de má qualidade no futuro.

Daqui a dois anos vamos ter uma campanha presidencial em que todo candidato vai prometer gerar empregos — sem ter a mais vaga ideia de como fazer isso. Como o País pode gerar mais empregos?

Primeiro precisamos entender e aceitar que toda a estratégia desenvolvimentista adotada nos anos 1970, e mais recentemente a partir de 2008, deu errado. Aquela estratégia de fortalecer a Petrobras, o conteúdo nacional para a produção de bens de capital e serviços de óleo e gás, fazer plataforma no Brasil, estaleiro no Brasil, estimular as empresas a fazer automóveis no Brasil… 

Num ambiente em que você está querendo estimular a inovação e o empreendedorismo, a geração de empregos, você precisa ter um ambiente institucional minimamente estável, regras do jogo minimamente estáveis. Precisa ter um sistema tributário claro e organizado. 

Nosso sistema tributário faz o contrário disso: ele premia alguém e pune os demais. Você investe numa atividade ou num estado não porque você acha que vai ser mais produtivo, eficiente, mas porque tem benefícios fiscais. As empresas estão investindo pela razão errada. Nosso sistema tributário — com a tributação variando por produto, guerra fiscal entre os estados e um sistema caótico de regras de crédito tributário — estimula o empreendedor a tomar decisões de investimento não porque ele vai fazer bem feito, mas porque ele vai pagar menos imposto.

A tributação indireta — que é a tributação sobre o consumo — tem que ser neutra, não tem que privilegiar uma atividade ou outra. Mas aí podem falar: ‘eu quero fazer política social, quero cuidar dos pobres, garantir que eles possam comer melhor’. Perfeito, mas em vez de desonerar a cesta básica, aumenta o Bolsa Família. Cobrar os impostos da cesta básica, pegar esses recursos e transferir para o Bolsa Família tem um impacto 12 vezes maior sobre a queda da desigualdade do que desonerar a cesta básica, que beneficia também a elite. 

Outro exemplo: o Brasil é uma economia muito fechada. Você não tem acesso aos bens de capital e as novas tecnologias feitas no exterior. Tem um mundo melhorando, novas tecnologias e processos sendo produzidos… mas a gente não tem acesso. O mundo avança, e vamos ficando cada vez mais para trás. Isso aconteceu na tecnologia de informática, na parte de bens de capital, e agora com a vacina. Isso acontece com frequência. Então temos que estar mais abertos ao comércio exterior, para ter acesso a novas tecnologias. 

Terceiro ponto: temos que voltar com uma agenda de fortalecimento das agências reguladoras, para dar segurança e regras estáveis para o investimento em infraestrutura. Como você vai fazer investimento em infraestrutura se tem aquela ameaça de expropriação da Linha Amarela no Rio, se teve a intervenção do Governo Dilma no setor elétrico?  Na época, as lideranças empresariais apoiaram a intervenção porque a promessa era de reduzir o preço da energia e ter mais energia nos próximos anos. Deu tudo errado! Ela fez a intervenção, o balanço das empresas implodiu, várias empresas tiveram muita dificuldade, o preço da energia subiu, e temos carência de energia até hoje. Olha o fracasso da intervenção malfeita. 

E para tudo isso acontecer tem que acertar a questão fiscal, senão você fica sem saber como o Estado vai pagar suas contas nos próximos anos e com receio da criatividade tributária que virá. Essa é a agenda mínima, sem mencionar o óbvio: a qualidade da educação.

Resumindo, o fechamento da Ford deveria enterrar a ideia de que o Governo pode gerar empregos escolhendo setores.

Se o Estado quiser incentivar algumas atividades específicas, tem que formar gente, desenvolver tecnologia, e estimular o empreendedorismo e a inovação — e não apostar num único caminho. 

De novo: nosso grande drama é que não faltaram políticas industriais muito agressivas nos anos 50 e 70, curiosamente seguidas de graves crises nos anos 60 e 80. Olha o fracasso que foram as intervenções a partir de 2008. Todas deram errado. Precisamos refletir sobre isso. Foi assim com a Petrobras e com as refinarias. Foi assim com as regras de conteúdo nacional para vários setores. Foi assim com o Inovar Auto. Estimulamos muitas fábricas no Brasil que eram caras, ineficientes e que não eram rentáveis.

A desindustrialização brasileira é resultado das intervenções equivocadas que fizemos. E o pior é que o setor empresarial, as lideranças do setor privado, apoiaram isso. A culpa não é só do Estado.