Uma restrição criada pela ANTAQ que limita a concorrência no maior leilão portuário da história do Brasil está fazendo o setor especular se as normas foram desenhadas para favorecer players específicos.
A mudança impossibilita a participação das três maiores armadoras do mundo (MSC, CMA CGM e Maersk) e de players financeiros — reduzindo a outorga a ser levantada pelo Governo Lula e potencialmente diminuindo a eficiência de um ativo estratégico para o escoamento de cargas do Brasil.
O leilão em questão é o do Tecon Santos 10 (STS10), um novo terminal que será construído no Porto de Santos e que vai aumentar em 50% a capacidade do porto, com a adição de 3,5 milhões de TEUs por ano.
Este leilão já é discutido há mais de uma década, mas ficou paralisado por pressão de players como a Santos Brasil e entraves políticos. No Governo Bolsonaro, o então Ministro de Infraestrutura Tarcísio de Freitas colocou o assunto em pauta e fez um desenho de como seria o leilão — mas não teve tempo de realizar a licitação antes do fim do Governo.
No final do ano passado, o tema foi retomado, e tudo caminhava para um leilão extremamente competitivo — até a semana passada.
No dia 26 de maio, tornou-se público um parecer da superintendência da ANTAQ, incluindo novas cláusulas numa nota técnica da própria agência que inviabilizam a participação dos três maiores armadores do mundo, que juntas têm 50% de market share, além de players financeiros, como fundos de infraestrutura.
A proposta da ANTAQ é que o leilão seja feito em duas etapas.
Na primeira, não poderá participar nenhuma empresa que já tenha alguma operação no Porto de Santos — o que tira da pista a MSC e Maersk, que são sócias do terminal BTP; a CMA CGM, que comprou recentemente a Santos Brasil; e a DPW, a empresa de terminais de Dubai que também opera um terminal no porto.
Esses players só poderiam participar da segunda etapa, que só ocorrerá caso não haja nenhum interessado na primeira (algo extremamente improvável). Neste caso, eles teriam que vender os ativos que já tem no Porto se vencerem o leilão.
Outra cláusula inserida pela superintendência da ANTAQ, e validada pelo diretor-geral, Caio Farias, é a exigência de que os participantes comprovem já haver operado algum terminal com pelo menos 100 mil TEUs de capacidade — cerca de 5% da capacidade do STS10 e um número considerado baixo por players do setor.
Essa exigência exclui do leilão players financeiros, como fundos de infraestrutura.
Na prática, segundo executivos do setor ouvidos pelo Brazil Journal, essas duas restrições acabam permitindo que apenas duas empresas que operam terminais no Brasil hoje consigam participar do leilão: a JBS, que opera há sete meses o terminal de Itajaí, que, coincidentemente, tem uma capacidade de pouco mais de 100 mil TEUs; e a ICTSI, uma empresa filipina que opera um terminal de contêineres em Pernambuco.
Players de portos estrangeiros – como a americana Hudson Ports, a chinesa Cosco e a japonesa ONE – também poderiam se habilitar, formando inclusive consórcios com as empresas que operam no Brasil.
As restrições estão gerando revolta no setor e críticas de diversos entes públicos. Hoje à tarde, o Governo do Estado de São Paulo entrou no assunto, enviando um ofício ao Ministério de Portos e Aeroportos criticando duramente as restrições impostas pela ANTAQ.
O ofício é assinado pelos secretários Rafael Benini e Natália Resende, que trabalharam com Tarcísio no desenho original do leilão.
O documento diz que o Governo do Estado foi pego de surpresa com as restrições da ANTAQ, e pede que todos os participantes do mercado tenham “condições irrestritas, amplas e isonômicas” de participar.
“Em nossa visão, não se revela pertinente a criação de regras restritivas que esvaziam a ampla competição, impedem a participação de agentes econômicos tecnicamente qualificados na disputa pelo ativo e podem resultar na prestação de um serviço menos eficiente e mais custoso para a cadeia logística paulista,” diz o documento.
O Governo do Estado nota ainda que a própria ANTAQ apresenta “uma alternativa (dentre outras possíveis) menos gravosa, que poderia mitigar os riscos de concentração de mercado, ao prever que, na etapa 2 da licitação, tais atores possam participar desde que assumam compromissos de desinvestimento em seus contratos atuais de arrendamento.”
“Assim, veja-se que a agência reguladora acabou por indicar uma solução menos restritiva à concorrência do que aquela adotada na proposta aprovada para o procedimento licitatório, demonstrando não haver justificativas legais ou técnicas para estabelecer-se a restrição da etapa 1.”
O executivo de uma grande empresa do setor lembrou ainda que o leilão acontece num momento de ciclo de alta histórica na logística internacional.
“Um leilão aberto, sem restrições, e com todas as empresas entrando teria uma competição muito feroz. Isso, do ponto de vista arrecadatória, seria muito positivo para o País,” disse ele.
A competição também é importante para garantir que o terminal terá a maior eficiência possível.
“O cara que colocar R$ 4 bi, R$ 5 bi de outorga vai ter que fazer o terminal girar muito para fazer esse investimento render, o que é um ganho para todo o setor, gerando um choque de preço e de eficiência. Se for um leilão sem competição, com uma outorga de R$ 1 bi, R$ 2 bi, a história é bem diferente.”
O presidente da Associação de Terminais Portuários Privados (ATP) e ex-diretor da ANTAQ, Murillo Barbosa, disse ao Brazil Journal que a regra das ‘duas etapas’ é algo que nunca foi praticado no setor.
“Não tem sentido nenhum limitar a concorrência num leilão dessa proporção,” disse ele. “Se no futuro, em função de um vencedor, for identificado que essa empresa vai passar a ter um poder dominante muito grande, o CADE está aí para isso. Ele foi criado para isso.”
O executivo notou ainda que uma licitação competitiva é benéfica para todo mundo. “Para o Governo é bom porque, com mais disputa, a outorga tende a ser maior. E para o Brasil é bom porque tem mais chances de um grande operador ganhar, que vai conseguir gerir o ativo com mais eficiência.”
Outro ponto que chamou a atenção foi a agilidade com que o Ministério dos Portos e Aeroportos encaminhou o parecer da ANTAQ para o TCU. Normalmente, há um período de análise para o Ministério avaliar o que está sendo proposto pela ANTAQ e se aquilo faz sentido. “Neste caso, o Ministério recebeu a proposta da ANTAQ na segunda e mandou para o TCU um ou dois dias depois,” disse o executivo do setor.
Na quinta passada, no programa “Bom Dia, Ministro”, o Ministro dos Portos, Silvio Costa Filho, disse que a decisão sobre a concorrência no leilão do STS10 cabe “à ANTAQ e ao TCU” — outro ponto que gerou estranhamento no mercado.
“É uma omissão completa do executor da política pública,” disse o mesmo executivo.
Agora, a superintendência de infraestrutura do TCU vai avaliar a proposta da ANTAQ e dar seu parecer, que depois será votado pelo colegiado do tribunal.
A depender da decisão, ela voltará para o Ministério com as recomendações do TCU, que vai decidir se aprova ou não e mandar a versão final para a ANTAQ, que é quem publicará o edital do leilão.
A expectativa do Governo é que o edital seja publicado em setembro e que o leilão aconteça ainda este ano — provavelmente em dezembro.
Até lá, os lobbies vão trabalhar mais que um estivador em turno duplo.