No final de novembro, antes da pandemia, a LVMH, o maior conglomerado global de luxo, e a Tiffany, uma das principais marcas de joias do mundo, celebraram um contrato de compra e venda que avaliava a empresa americana em aproximadamente US$16 bilhões, o equivalente a US$135/ação e um prêmio de 35% em relação aos valores de negociação da Tiffany antes do anúncio.

Esta semana, a LVMH anunciou, por meio de um comunicado, que não completaria a aquisição da Tiffany. Esse comunicado resultou em uma série de acusações mútuas sobre quebras de obrigações contratuais e em um processo movido pela Tiffany contra a LVMH. Os principais temas apresentados pelas empresas giram em torno de uma carta do governo francês para a LVMH, a cláusula de Material Adverse Effect (evento de força maior) e uma protelação, por parte da LVMH, na obtenção das aprovações regulatórias.

A LVMH alega ter recebido uma carta do governo francês solicitando postergar o fechamento da transação até janeiro de 2021. Segundo a empresa francesa, o ministro de relações exteriores fez esse pedido como uma forma de retaliação a ameaças de aumento de impostos sobre produtos franceses pelos EUA. O problema é que a data sugerida pelo ministro é posterior à data limite para consumar a transação prevista no contrato de 24 de novembro de 2020.

Na visão da LVMH, isso desobrigaria a empresa de honrar com o contrato firmado com a Tiffany. Segundo o contrato de compra e venda, a LVMH estaria desobrigada da compra caso existisse uma ordem direta do governo, o que não está claro que é o caso, uma vez que o pedido é de adiamento e não de cancelamento da transação. Na visão da Tiffany, que alega ter tido acesso a uma cópia traduzida, e não ao documento original, tal solicitação não configura base para a dissolução da transação. A empresa americana também afirmou que a carta, datada de 31 de agosto, só foi apresentada agora.

Além disso, a LVMH alega que a Tiffany apresentou uma performance aquém do esperado durante a crise e que não agiu de forma responsável, pagando dividendos durante um período de quedas de vendas significativas em função da pandemia causada pelo COVID-19 (as vendas da Tiffany no primeiro semestre de 2020 foram 37% menores que o mesmo período no ano anterior).

A Tiffany alega que o pagamento de dividendos durante o período estava previsto em contrato e, portanto, agiu de acordo com o curso normal de negócios. A empresa americana também alega que a pandemia não configura, de acordo com a cláusula do contrato, um Material Adverse Effect (MAC). A cláusula de MAC desobriga o comprador de honrar a compra nos termos combinados caso ocorra um evento muito fora do esperado entre o anúncio da transação e o fechamento. Apesar da pandemia parecer, sim, ser um evento que se enquadraria nessa categoria, o acordo assinado entre as partes exclui explicitamente alguns eventos de serem classificados como tal, como, por exemplo:

– Eventos que afetem o setor como um todo, incluindo impactos advindos de efeitos políticos ou econômicos (como relações comerciais entre EUA e China, oscilações nos preços de commodities, etc);

– A Tiffany não atingir metas estabelecidas em planos de negócios passados;

– Crises geopolíticas ou manifestações populares (como vinha ocorrendo em Hong Kong na época da assinatura do contrato);

– Desastres ambientais como tornados, terremotos, enchentes, entre outros.

Como a pandemia poderia ser enquadrada tanto como um evento de força maior quanto como uma das exceções acima, não está totalmente claro que existe, na cláusula de MAC, a possibilidade da LVMH sair do contrato nos termos acordados.

Por último, a Tiffany alegou que a LVMH, que assumiu toda a responsabilidade por obter as autorizações dos órgãos reguladores dos diferentes países, vinha postergando tais processos para que a data limite não fosse cumprida. Segundo a empresa, a LVMH ainda não tinha entrado com os pedidos de aprovação dos órgãos reguladores da União Europeia e de Taiwan, além ainda de não ter obtido aprovações no México e no Japão. Segundo a joalheria americana, esses atrasos colocam em risco a obtenção dos requisitos necessários para a consumação da transação até o final de novembro. A LVMH refuta a acusação.

Muito provavelmente essa disputa está motivada pela mudança de visão sobre o valor da Tiffany pela LVMH. O setor de luxo foi massacrado pela pandemia em função da sua dependência de turismo e viagens. Além disso, por ser um gasto discricionário, o setor de luxo também é afetado pela menor propensão ao consumo em função da menor confiança no futuro. Por último, ainda não se tem muita visibilidade sobre quando e como as pessoas voltarão a viajar e consumir, o que gera uma maior incerteza em relação a uma potencial retomada. É bastante provável que marcas-referência, como Louis Vuitton, Bulgari e Tiffany, sejam as primeiras a esboçar uma reação, mas ainda sim o setor como um todo deve levar anos para voltar ao que se esperava em termos de crescimento.

Sendo assim, é compreensível que a LVMH venha tentando renegociar os termos do contrato, uma vez que o valor acordado de US$135/ação significou um prêmio de mais 30% sobre o preço da ação na época. Em junho, alguns veículos reportaram conversas entre as empresas em que a LVMH tentava, sem sucesso, renegociar os termos da transação. Por outro lado, nenhum dos pontos acima oferece uma avenida clara para a LVMH sair da transação nos termos negociados. É bastante possível que novos elementos venham à tona à medida em que a situação se desenrole.

Os prováveis desfechos são a consumação da transação nos termos contratados, o que significaria uma decisão contra a LVMH, uma renegociação dos termos econômicos ou uma dissolução da transação como um todo, o que deixaria a Tiffany como empresa independente ou em busca de um novo comprador.

Na nossa visão, a transação tinha – e ainda tem – um racional estratégico coerente com as alocações passadas de capital do grupo francês, de consolidar diversas marcas de luxo referência sob seu guarda-chuva. Também havia uma narrativa que o prêmio se justificava pelo fato da Tiffany ser um ativo único em um mercado que já havia se consolidado em conglomerados e pelos potenciais ganhos de eficiência que poderiam ser extraídos uma vez que a Tiffany estivesse integrada na infraestrutura do grupo, como ocorreu com a Bulgari alguns anos atrás. A dúvida é se a atual situação econômica ainda permite a captura de tais ganhos para justificar o prêmio pago.

Arthur Siqueira é sócio e analista de investimentos da Geo Capital, gestora especializada em ações globais.