Remédios ajudam. Mas se a dose for excessiva, o remédio vira veneno.

Até a idade adulta, Napoleão Bonaparte não se considerava francês. De fato, não era. Nasceu na Córsega, filho de uma família italiana. Foi batizado Napoleone di Bonaparte. Apenas em 1768, ano anterior ao do seu nascimento, a Córsega foi incorporada à França. Até então, ela fora governada pela cidade-estado de Gênova. O sentimento da maioria dos corsos, naquele período, era o de se manter independente. Houve grande resistência à incorporação gaulesa. A língua materna de Napoleão não era o francês, e apenas mais tarde em sua vida, quando foi para a academia militar no continente, aprimorou seu domínio da língua de Molière, sem jamais, contudo, perder o sotaque corso.

Por sua habilidade e inteligência política, Napoleão assumiu a liderança da França. Tornou-se imperador. Com o tempo, sua imagem se associou com a do próprio país que governou. Possivelmente, não há outro líder francês – com exceção de De Gaulle – que simbolize tão fortemente a França.

O primeiro episódio de Asterix, protagonista da coleção de histórias em quadrinho, foi lançado em 1959. Os gibis, que alcançaram fama internacional, contam de uma fictícia aldeia gaulesa da época do Império Romano, que bravamente resistia aos poderosos invasores.

Na verdade, os quadrinhos registravam com profundo humor os hábitos dos franceses, suas peculiaridades e idiossincrasias. Sem exagero, pode-se dizer que ler as engraçadas aventuras de Asterix é uma das melhores formas de compreender a cultura francesa.

Um de seus autores, René Goscinny, era filho de imigrantes judeus. Pai polonês e mãe ucraniana. Aos dois anos de idade, Goscinny mudou-se da França para a Argentina, e no começo da carreira profissional partiu para Nova York atrás de emprego. De lá, chegou à Bélgica. Só retornou a Paris quando tinha 26 anos, em 1951. Foi nesse ano que conheceu o outro autor de Asterix, Albert Uderzo. Este, filho de italianos.

Nenhum dos dois, portanto, eram franceses “da gema”. Ambos imigrantes. Contudo, pela sensibilidade, conseguiram ler e desnudar a alma francesa de forma sublime.

O Brasil tem exemplos semelhantes.

Castro Alves não era escravo, mas narrou o “horror perante os céus” da “fatalidade atroz” do tráfico negreiro.

Machado de Assis, gênio da nossa literatura, não tratou nas suas obras de sua origem humilde. Nascido no Morro do Livramento e descendente de negros, Machado escreveu sobre a burguesia do Rio de Janeiro de sua época.

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, numa família judia. Isso não a impediu de desvelar em seus romances a natureza da cultura brasileira.

Carybé – ou Hector Julio Páride Bernabó – foi um argentino que se apaixonou pela Bahia, pelas suas histórias e seu sincretismo religioso. Mudou-se para Salvador quando tinha cerca de 40 anos. Como pintor, gravador e muralista, registrou, como poucos, a Bahia de todos os santos.

O historiador australiano Patrick Wilken publicou, em 2004, “Império à Deriva”, num dos melhores trabalhos examinando o período da corte portuguesa no Brasil. Um estrangeiro que, num esmerado estudo, cuidou de um momento peculiar do País.

Todos esses relatos tratam de pessoas que conseguiram compreender e retratar uma realidade que não era a delas.

De forma sensível, hoje, prega-se a atenção ao que se convencionou chamar de “lugar de fala”. Quando o conceito começou a ser valorizado, buscava-se compreender a origem de quem emite uma opinião para, idealmente, amplificar seu ponto de vista.

Imagine-se, por exemplo, o portador de uma doença rara que venha a público explicar o mal que o atormenta. Naturalmente aquele depoimento, vindo de quem experimenta a enfermidade, ganha força. Tome-se o morador de uma comunidade carente, que vive em terríveis condições de pobreza. Quando esse morador expõe sua realidade, terá especial legitimidade para denunciar o drama. 

Na atualidade, a importância dada ao “lugar de fala” cresceu exponencialmente. Isso é bom. Um remédio. Acima de tudo porque permite que grupos minoritários, muitas vezes discriminados e marginalizados, sejam ouvidos e respeitados.

Contudo, o exagero na aplicação do “lugar de fala” é um veneno. 

Isso se dá pela rejeição da opinião de uma pessoa pelo mero fato de ela não preencher a posição referida em seu discurso. Nessa vertente, um homem não poderia falar sobre feminismo, e um judeu não poderia tratar do cristianismo.

Numa distorção da ideia original, apenas as pessoas que pertencem a certo grupo teriam “lugar de fala” para se manifestar sobre temas relacionados a esse grupo, enquanto todas as demais perderiam legitimidade para expressar seus pontos de vista acerca do tema.

A estratégia de tentar anular uma opinião por conta da condição pessoal de seu emissor é antiga. 

Ela já foi identificada pelos oradores clássicos como uma tática ardilosa de evitar a discussão, sem enfrentar diretamente argumentos adversos, a partir da desqualificação pessoal do adversário. Eram os argumentos ad hominem

Isso se dá quando se refuta uma opinião dizendo, por exemplo: “seu ponto de vista sequer deve ser considerado porque você não tem qualificação profissional para emiti-lo”. Pronto. Assim, o ponto de vista é emudecido.

Uma sociedade saudável abre espaço para a manifestação do pensamento de todos, com respeito e tolerância às diversas vivências. Como ensina a história, a verdadeira e maior força de uma opinião reside, acima de tudo, na sua consistência.

Embora as circunstâncias do emissor da ideia possam ser levadas em consideração, quando se trata de uma ideia o conteúdo é sempre mais importante do que a forma.

Buscar desqualificar a opinião de alguém simplesmente pela ausência de “lugar de fala” é tão grave quanto deixar de se atentar a ele. 

Em outras palavras, é fundamental reconhecer a importância da opinião de alguém que vivencia o tema de que trata. De outro lado, discriminar um ponto de vista pelo emissor não pertencer a certo grupo é um preconceito que apequena a sociedade. 

Não se pode perder de vista que os grandes avanços sociais costumam surgir a partir da escuta de críticas, semeada pela liberdade de expressão.

Uma das grandes virtudes do Brasil decorre de nossa diversidade. Calar alguém pela alegada inexistência de “lugar de fala” tira do País a oportunidade de colher proveito dessa riqueza. 

Essa forma de intolerância privaria o mundo das histórias de Asterix e da arte de Carybé. Os franceses não poderiam reverenciar Napoleão e Castro Alves não teria denunciado a bestialidade da escravidão. 

Permitam-me dizer o óbvio: num mundo ideal, as pessoas são julgadas e respeitadas mais pelo que fazem e dizem do que por suas origens ou títulos.

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados.