O fechamento da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, a última de uma rede que já teve 17 lojas em oito estados, produziu a mobilização passivo-retardatária que virou tendência em São Paulo. Do Bar Balcão ao antigo anexo de um cinema de rua na Augusta, os pedidos sempre requerem uma intervenção financeira estatal.

A Cultura estava no vermelho desde 2012 e entrou com pedido de recuperação judicial em 2018. A falência foi decretada em fevereiro. Parece que os defensores da Cultura não andavam lendo nada, nem sobre o assunto.

Só no final de março, uma vereadora do PT paulistano pediu a órgãos de patrimônio histórico que tombassem o imóvel onde fica a livraria. Não se sabe como ela pretendia ressuscitar o negócio, caso só o imóvel ficasse congelado. Em abril, o Ministério Público abraçou a ideia e também sugeriu o tombamento.

Mais conversas sobre tombamento voltaram à força quando ela foi lacrada de vez, na terça, dia 27. Engraçado que a livraria não teria aberto ali se o Cine Astor, que ocupava o espaço antes, estivesse tombado.

Mas calma: a livraria deve reabrir de novo na terça-feira, pelo vai-e-volta típico do Judiciário. Não se sabe por quanto tempo.

O debate pendular foi da má gestão do herdeiro da Cultura à suposta queda no consumo por livros no Brasil.

Na verdade, o mercado livreiro nacional é pequeno. No ano passado, movimentou apenas R$ 5,5 bilhões, incluindo as vendas de livros didáticos e religiosos. As aplicações de botox no país, sozinhas, movimentam R$ 3 bi. As cirurgias de lipoaspiração, mais do que isso.

O setor todo vendeu 314 milhões de exemplares, o que não dá 1,5 livro por brasileiro por ano, de acordo com o último Censo. Mas boa parte do ramo está adaptado: o maior canal de vendas do País já é o virtual: 35,2% do faturamento, de acordo com a Câmara Brasileira do Livro.

Mas o caso da Cultura era especial, para quem lê o noticiário regularmente. O editor e concorrente Evandro Martins Fontes afirmou à Folha, em 2018, que já não fornecia livros para a Cultura há dois anos (desde 2016) “por falta de pagamento”.

Chamou de “irresponsabilidade administrativa” a expansão para shoppings das redes Cultura e Saraiva. Acrescentou que o concorrente “posava de bonzinho por trabalhar com um bem cultural”, mas que “voava de helicóptero em São Paulo de cima para baixo”.  “Vou fechar os olhos para isso? Sou credor!”

Sergio Herz, neto da fundadora da rede e filho de Pedro, responsável pela expansão, estava no comando desde 2012. Recebeu o prêmio de CEO do ano da revista Forbes em 2017. Em entrevistas, mal falava de livros.

Concorrentes destacam a ausência dele de eventos literários, da Bienal à Festa de Paraty, a Flip. Curtia muito mais Aspen. Na mesma década, a rede Livraria da Travessa, pilotada pelo mineiro-carioca Rui Campos, abriu filiais em shoppings pelo País, uma movimentada loja de rua em Pinheiros e até uma loja em Lisboa.

Outro alvo dos preservacionistas passivos é o Bar Balcão, a apenas sete quadras da Livraria Cultura, também nos Jardins.

O bar é um reduto da boemia de alta renda paulistana 40+, famoso por ostentar em uma parede uma serigrafia de quase três metros de uma série de Roy Lichtenstein, o artista de pop art americano. O estabelecimento anunciou que talvez o imóvel (que aluga desde 1994) seja vendido para uma incorporadora construir um prédio.

O filho de um arquiteto famoso, também arquiteto, disse que o bar deveria ser tombado. “Já que os órgãos de preservação não servem para nada, pelo menos que salvem o bar,” protestou.

É provável que aconteça um abraço ao Balcão. Mas é bom ter pressa. Um abraço similar em torno da Cultura do Conjunto Nacional só ocorreu em fevereiro, após a falência, quatro anos e meio depois da Recuperação Judicial. Os ativistas leram poemas.

Ninguém pensou que, talvez, o Balcão consiga mudar de local e atrair até mais clientela, ou rejuvenescer a atual. O veterano restaurante Ici saiu de um casarão em Higienópolis para um galpão a uma quadra dali, e ganhou mais movimento, claridade e consumo. Bares, restaurantes e baladas abrem, fecham e se mudam até de bairro corriqueiramente. Ninguém sabe disso?

Aliás, se o construtor fosse esperto – nem sempre é – já estaria negociando com o próprio bar para fazer o edifício Balcão. E garantindo o térreo e o mezanino para a veneranda instituição boêmia. Branding é isso.

Em nenhum desses casos – mesmo havendo manifestantes endinheirados – surge a proposta de um fundo, uma vaquinha ou contribuições para se manter o equipamento cultural vivo.

Alguns dos que mais protestam têm boa conta bancária, mas não há sinal de comprometimento com uma doação pessoal. A receita já gasta é pedir tombamento, depois, que a Prefeitura desaproprie o bem por algumas dezenas de milhões de reais, e que funcionários públicos cuidem da manutenção. Muitas vezes, cola.

Havia um abaixo-assinado de 15 mil pessoas para que a Prefeitura desapropriasse o imóvel onde funcionava o anexo do Espaço Itaú Augusta e também tombasse um café contíguo. As duas pequenas salas tinham 111 lugares –  juntas. O imóvel foi comprado por outra incorporadora. Está a menos de três quadras da Livraria Cultura. Um abraço convocado para defender o cinema atraiu apenas 40 pessoas.

Se as Pirâmides de Gizé estivessem em São Paulo, seu eventual desaparecimento não causaria tanta comoção. E não por causa da “grana que ergue e destrói coisas belas,” mas porque muitos paulistanos intelectualizados acham que a história só começa no dia em que nasceram. É o tombamento do próprio umbigo.

O fim do Museu da Casa Brasileira, o abandono da Casa das Retortas ou o vazio da Galeria Prestes Maia não provocam 10% da celeuma do bar com menos de 30 anos de idade. Um carioca acharia graça na choradeira por um bar que não tem nem 50 anos.

Mas nem tudo é luto e vale de lágrimas na cena cultural da área mais rica e bem servida de opções culturais da Pauliceia.

Na quarta-feira, um dia após o fechamento da Cultura, a vizinha e novata livraria Drummond desfrutava de uma fila de compradores que saía para o corredor do Conjunto Nacional. Rodrigo Murta lançava ali seu livro A Arte de GPTear, e os autógrafos eram dados por um robô. Com mãozinha e tudo. Os compradores na fila, do empreendedor serial Flavio Pripas a Mansur Bassit, ex-diretor-executivo da Câmara Brasileira do Livro, não dissimulavam a excitação de chegar perto do robô. Havia um clima de banda K-Pop dando autógrafos, mas para um público adulto. Quem se reinventa ainda consegue achar um bom público.