Três semanas atrás, quando o ator Flavio Migliaccio resolveu tirar sua própria vida, um Lima Duarte comovido gravou um depoimento dizendo entender a tristeza do amigo.
“Eu te entendo, Migliaccio,” disse a voz mais grave e longeva da televisão brasileira, com a entonação da mágoa e o timbre da tristeza.
Lima botou o dedo na cara do regime atual, que homenageia torturadores e zomba da democracia, e disse que sabe que sua hora também está chegando.
Aqueles poucos minutos de Lima — ao mesmo tempo testemunho, acusação e cobrança — já entraram para a História do nosso tempo, e já seria impossível para mim esquecê-los.
Mas esta semana, o ator nonagenário deu uma entrevista por vídeo a Pedro Bial. (Infelizmente, o melhor da TV hoje passa às 2 da manhã, quando ninguém está acordado.)
Lima, que mora sozinho num sítio no interior de São Paulo, brincou que vive em quarentena desde que se mudou para lá há 40 anos, e pôs-se a contar histórias que viveu.
Teve aquela vez em que ele, ao terminar a novela “O Salvador da Pátria” com 73% de audiência no ibope, foi levado de carro por Fernando Henrique Cardoso até a casa de Mario Covas. O objetivo: o PSDB queria Lima como vice de Covas na eleição de 1989, mas o ator declinou.
Lima contou a história para refletir sobre como atores raramente servem para a política. O assunto, claro, era Regina Duarte. “Ela caiu no dia que entrou,” disse Lima. “Me lembrou o Chapeuzinho Vermelho.”
Teve aquela outra vez, 30 anos antes, em que certo dia a Veraneio da Polícia veio buscá-lo no teatro, num tempo em que já se sabia que o regime torturava.
Ao avistar o carro, Lima disse a um amigo, “Avisa lá em casa que vieram me buscar… fala para as minhas meninas que eu volto”. Disse a frase sem saber se voltaria mesmo.
Ao chegar ao DOPS, Lima passou pelo delegado Fleury (famoso pela tortura) e foi entrevistado por um funcionário menor.
Em seguida desceram com ele ao porão, onde Lima avistou o físico teórico Mario Schenberg, um dos maiores cérebros do País, “o único na América Latina citado por Albert Einstein.”
Ligado ao PCB, Schenberg foi cassado e preso pela ditadura. Detido ali, o físico vestia só um paletó de pijama e uma bermuda, ambos puídos. “Ali eu tive a consciência de que eles estavam com muito ódio do conhecimento e queriam nos destruir a todos,” lembra o ator.
Em outro momento, Lima falou de quando interpretou o Sargento Getúlio, o personagem de João Ubaldo Ribeiro. “Você tem ginásio? Olha o que eu faço com quem tem ginásio!”, diz o Sargento num trecho do romance, antes de dar um soco na cara de um preso.
Lima lamentou também a fala repulsiva de Lula de que “ainda bem” que o “monstro do coronavírus” veio para mostrar que o Estado é necessário. Disse que repudiava a glamurização da ignorância perpetrada por Lula.
Lima Duarte está triste, e isso me deixa mal.
Sou de uma geração que cresceu vendo Lima Duarte na TV e no teatro. Ele é o padrão ouro das artes brasileiras e, quando sua hora chegar, o País terá perdido um gigante — se temos muitos, ele é um dos maiores.
Mas enquanto este dia não chega, contemplemos este gigante das artes, triste com os rumos do Brasil.
Seu olhar denuncia o nosso fracasso, sua voz está amarga, e uma piada aqui e ali apenas pontua que o tempo é sombrio.
A geração de Lima ajudou a redemocratizar o Brasil, mas nunca imaginou o retrocesso cultural e institucional dos nossos dias: a exaltação da ignorância, o repúdio à ciência, o estímulo às divisões profundas, o ressentimento no Poder.
Lima Duarte está triste, e isso tem que nos incomodar.
É comovente ver que um homem que já deu ao País tanta alegria chegar ao fim da vida desapontado com os seus rumos, sentindo que pusemos tudo a perder, que aquele suor talvez não tenha valido a pena.
A tristeza de Lima Duarte é o choro de uma nação (ou de boa parte dela, pelo menos). Um choro silencioso.
Por enquanto.