Merecidamente celebrada por sua qualidade e sistematicidade, a Lei das Sociedades por Ações – nº 6.404, de dezembro de 1976 – se aproxima dos seus 50 anos resistindo muito bem ao teste do tempo.
As razões para isso são de duas ordens.
Há, em primeiro lugar, o reconhecimento de que a lei é boa, ainda funciona bem e forma um sistema cuja coesão deve ser mantida.
A essas (acertadas) considerações positivas acerca de sua qualidade somam-se outras, menos lisonjeiras, a respeito das experiências vividas e, sobretudo, dos resultados alcançados nas poucas reformas já realizadas, que evidenciam os riscos de execução inerentes ao processo legislativo.
Nesse contexto, consolidou-se uma tendência de dedicar à lei societária um olhar que é, ao mesmo tempo, respeitoso e complacente: adverte-se, com razão, que a lei é boa e que eventuais mudanças, quando verdadeiramente necessárias, devem ser feitas com muito cuidado, em respeito ao seu sistema; mas também se resiste, em certos casos sem razão, a reconhecer que certas deficiências do nosso mercado poderiam ser corrigidas – ou ao menos minimizadas – com ajustes na lei.
Neste breve texto, quero mostrar que a Lei das SA foi, desde a sua elaboração, concebida como uma lei que deveria ser periodicamente revisitada e atualizada.
Consequentemente, a melhor forma de se homenagear os autores do anteprojeto que resultou na Lei nº 6.404/1976 – os extraordinários José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho – e manter vivos os seus legados não é, ao contrário do que pode parecer, defender o texto original de qualquer tentativa de mudança, e sim desenvolver um olhar atento ao que acontece, aqui e lá fora, no direito societário e ver como nossa lei pode e deve ser atualizada.
Foi essa, aliás, a postura de Lamy e Bulhões quando elaboraram o anteprojeto. Fartamente documentado, o processo legislativo mostra que os autores da Lei das SA declaradamente buscaram, sempre que possível, respeitar a lei anterior – o Decreto-Lei 2627, que, vale dizer, foi fruto do trabalho de Trajano de Miranda Valverde, outro grande jurista.
E, se algumas inovações introduzidas na Lei de 1976 foram verdadeiramente originais – caso, por exemplo, do regime jurídico do acionista controlador –, fato é que muitas outras foram inspiradas nas leis societárias de outros países, como, por exemplo, as ações sem valor nominal, baseadas no direito americano, e a disciplina sobre os grupos de sociedades, influenciada pelo direito alemão.
Nesses quase 50 anos, as leis societárias de outros países não ficaram paradas. Ao contrário, foram frequentemente alteradas.
Nos Estados Unidos, onde o direito societário é de competência do legislador estadual, a referência mais óbvia é o Estado de Delaware. Editado em 1899, o Delaware General Corporation Law (DGCL) já foi objeto de dezenas de mudanças. Nas últimas três décadas, foi alterado praticamente todo ano.
Já o Model Business Corporation Act (MBCA) – a lei-modelo preparada pela American Bar Association e que serve de referência para diversos estados norte-americanos – teve sua versão inicial publicada em 1950 e passou por três grandes revisões completas, a última em 2016. Desde então, já sofreu ajustes pontuais.
Na Europa, é possível ver movimentos similares. No Reino Unido, está em vigor o Companies Act de 2006, que já foi objeto de alterações desde sua edição. Reformas também são relativamente frequentes no direito francês. Desde sua recodifiação em 2000, o Code de Commerce foi alterado diversas vezes em matéria de direito das sociedades anônimas.
Esse dinamismo do direito societário ao redor do mundo não causaria surpresa a Lamy e Bulhões, que, em diversas oportunidades, demonstraram ciência desse fato e defenderam que a lei brasileira deveria ser periodicamente revista.
Mas, se nossa lei societária é muito boa – e de fato é – por que então devemos atualizá-la?
Sem pretender esgotar o assunto aqui, cabe apontar alguns motivos.
O primeiro é que, como qualquer obra humana, a Lei das SA tem suas falhas. Os próprios autores do anteprojeto reconhecem alguns desses, como por exemplo o elevado grau de genericidade de muitos dispositivos da lei, que contribui para a existência de inúmeras dúvidas de interpretação que poderiam ser eliminadas caso o anteprojeto tivesse sido elaborado com a previsão expressa de maior número de hipóteses encontradas na prática.
Em segundo lugar, alguns pontos da lei simplesmente não funcionaram a contento. É o caso, por exemplo, das regras processuais, que, já há muito, eram apontadas como inadequadas e insuficientes. Independentemente da visão que se tenha do Projeto de Lei nº 2925/2023 – que busca, em essência, fortalecer o sistema de tutela privada do direito dos investidores no mercado de capitais –, parece-me inquestionável que a discussão sobre o tema era, no mínimo, mais do que devida.
Em terceiro lugar, certas regras podem ter se tornado ultrapassadas ao longo do tempo. Trago aqui dois exemplos: a eleição dos membros do conselho de administração por votação majoritária e a exigência de aprovação pela assembleia geral da remuneração dos administradores.
A lição de Lamy e Bulhões não nos indica apenas a necessidade de atualização da Lei das SA, mas também o modo como a lei deve ser revista, rediscutida e, quando pertinente, reformada. A qualidade da nossa lei não decorre apenas da genialidade dos autores, mas, também, do fato de ela ter sido precedida de muito estudo e debate.
Em outros países, costuma-se criar comissões de especialistas para estudar, debater e propor mudanças, normalmente acompanhadas de documentos bastante elaborados em que se disponibilizam, ao público em geral, informações sobre as ideias por trás de cada tópico da reforma e possíveis visões divergentes a respeito de cada matéria.
Que nós possamos, também no Brasil, desconstruir essa visão de uma lei estática e, o que é mais importante, entabular discussões desarmadas e fundamentadas acerca de possíveis mudanças que possam, de maneira verdadeira, contribuir para o desenvolvimento do direito societário e, consequentemente, do mercado brasileiro.