No apagar das luzes da última sexta-feira, o Presidente da República tentou um gol de mão digno daquele de Maradona contra a Inglaterra na Copa de 1986.

Representado pela Advocacia-Geral da União, protocolou no STF uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) com o objetivo de, em suas palavras, solucionar “controvérsia judicial atualmente existente para reconhecer que a receita ou faturamento das empresas, base de cálculo do PIS/COFINS, deve ser considerada sem a exclusão das despesas incorridas, inclusive as tributárias.”

Por detrás do palavrório e do pedido articulado de forma propositadamente vaga, o que a AGU busca com a propositura de uma ação que se pretende “guarda-chuva”, na prática, é aplicar um drible da vaca nas normas processuais e regimentais, na tentativa de reverter o cenário desfavorável à União que vem se consolidando em certas disputas tributárias em curso no próprio STF.

É, por exemplo, o caso das controvérsias envolvendo a inclusão, nas bases de cálculo do PIS e da COFINS, dos valores correspondentes (i) ao ISS e (ii) aos créditos presumidos de ICMS concedidos pelos Estados e outros.

Ambos os casos tiveram seus julgamentos iniciados há mais de quatro anos e se aproximam de um desfecho – ao que tudo indica – favorável aos contribuintes.

Consideradas as circunstâncias, fica escancarado que o objetivo final da manobra é aproveitar as recentes mudanças na composição da Corte para reiniciar as votações do zero, desconsiderando os votos já proferidos pelos quatro ministros que se aposentaram no curso dos julgamentos – todos eles favoráveis às posições dos contribuintes.

Com a pedestre chicana, o Governo busca contornar a regra estabelecida de forma categórica pelo próprio STF, que definiu que os votos proferidos pelos ministros que se aposentem antes da conclusão dos julgamentos devem ser mantidos, vedando-se a participação daqueles que os substituíram no cargo. Caso a discussão seja reiniciada na ADC, os mais recentes integrantes da Corte estariam aptos a votar, e as posições de seus antecessores seriam descartadas.

Além de demonstrar profundo desapreço às posições de magistrados – dentre os quais, o atual Ministro da Justiça – que se dedicaram a analisar com profundidade as controvérsias e, através de seus votos, deram contribuições relevantes para o processo de interpretação constitucional, a manobra atenta contra a dignidade da Corte, ofendendo as inquestionáveis independência e autonomia de seus sucessores, especialmente aqueles indicados pelo atual Governo, por parecer pressupor algum tipo de alinhamento deles com os interesses arrecadatórios.

O canhestro estratagema não é novo; já foi utilizado anteriormente em circunstâncias bastante semelhantes quando do ajuizamento da ADC 18, que envolvia a discussão sobre a exclusão do ICMS das bases do PIS/COFINS, a chamada “tese do século”.

A exemplo do que ocorre agora, também naquela ocasião a AGU utilizou-se de uma ADC para tentar impedir a conclusão de um julgamento no qual já havia maioria formada contra os seus interesses. Embora malsucedida na tentativa de reverter o placar, a manobra permitiu que a União postergasse o desfecho desfavorável por quase uma década, garantindo bilhões de reais em arrecadação de tributo inconstitucional.

Dessa vez, a excessiva ênfase que a inicial da ADC dá aos potenciais impactos que as teses representariam para os cofres públicos – utilizando-se das estimativas sempre mal explicadas e jamais escrutinadas da própria Fazenda Nacional – denuncia, a um só tempo, a aridez dos fundamentos jurídicos da ação e o recurso ao Judiciário como instrumento de política fiscal.

Aparentemente, sabedor de que o Projeto de Lei Orçamentária para o próximo exercício foi erigido sobre as arenosas bases do otimismo em excesso – como, aliás, já apontou a IFI – o Governo parece tatear em busca de qualquer alternativa que lhe permita aumentar a arrecadação ou evitar perdas prováveis e mesmo as já consolidadas.

É lamentável que assim o seja. O respeito à estabilidade da jurisprudência é corolário da segurança jurídica. O contencioso tributário não pode ser constantemente um vetor de dúvida, pronto a espantar investimentos e gerar descrédito institucional.

Para ficar nas analogias futebolísticas, o comportamento da União lembra o da criança que, valendo-se da prerrogativa de ser a dona da bola, anuncia o fim da partida quando a derrota de sua equipe parece irreversível.

Caberá ao STF demonstrar que, em matéria de controle de constitucionalidade, quem apita são os juízes da Corte.

Luiz Gustavo Bichara e Fernando Raposo Franco são sócios do Bichara Advogados.