Quando McCain era jovem e servia a Marinha americana na Guerra do Vietnã, o avião que pilotava foi abatido em vôo e ele despencou dos céus de Hanói. Capturado e torturado, não entregou seus irmãos de farda.
Começava ali uma das carreiras políticas mais respeitáveis dos EUA.
Nas décadas seguintes, McCain se tornaria um senador ativo e interessado em política externa e no tratamento dado aos veteranos de guerra — e um parlamentar capaz de discordar de seu próprio partido para defender o que julgava ser o interesse do País.
McCain sucumbiu em 25 de agosto a um câncer no cérebro e, ao longo da última semana, recebeu o funeral de um rei.
Em 2008, concorreu à Casa Branca. Num evento de campanha, uma eleitora pegou o microfone e lhe perguntou sobre seu adversário, Barack Obama: “Ele é um árabe, não?” Um McCain visivelmente triste com a mistificação embutida na pergunta respondeu, “Não senhora, ele é um homem decente, de família, com quem eu, por acaso, discordo em assuntos importantes.” No mesmo evento, outro eleitor lhe disse que estava “assustado” com a possível eleição de Obama. McCain respondeu que aquilo era desnecessário, e repetiu que Obama era “decente.”
Dias depois, McCain perdeu a eleição, mas a política americana cristalizou um estadista. Com o país rachado, McCain aproveitou seu discurso reconhecendo a derrota para dizer que “Obama agora é meu Presidente também.”
Demonstrações de liderança como essa — que vão contra o interesse pessoal do político — não são apenas raras: chegam a ser impensáveis na política contemporânea. McCain buscava o que os americanos chamam de ‘common ground’ — o mínimo denominador comum que é a base da paz social.
Num mundo em que a tecnologia deu um megafone aos histéricos, aos ignorantes e aos radicais, o político ‘esperto’ amplifica estas vozes para tornar-se o seu candidato. E quando há pessoas atordoadas com a crise estrutural do emprego e mudanças nos costumes ainda não compreendidas, o político oportunista explora a incerteza e a insegurança.
Em vez de liderar e iluminar o caminho, o populista se incorpora à onda e tenta surfá-la. É um parasita que se alimenta do medo e só sobrevive na polarização.
John McCain era o oposto do político populista.
Não teve medo de dizer à sua base eleitoral que ela estava errada, nem de fazer acordos com seus adversários. Seu amigo e também Senador Lindsey Graham relembrou esta semana a lição que McCain lhe ensinou sobre a arte de construir consensos: “O outro lado tem que ganhar algo também.”
O Brasil precisa voltar a ter estadistas — não ‘salvadores da pátria’, mas pessoas que vêem na Política uma forma de servir, que colocam o País acima de todas as outras causas, e que não cedem ao discurso fácil.
Os escândalos do mensalão e do petrolão mancharam muitas biografias e condenaram outras para sempre. Traumatizado, o Brasil jogou toda a política na vala comum e deixou de vê-la como algo necessário. É um caminho perigoso. Sem Política não existe nação — apenas tribos que se odeiam.
Muitos eleitores querem um presidente que “peite” o Congresso e o Supremo, como se deste embate fosse emergir um país melhor. Como se tudo fosse uma questão de ‘atitude’, e não da forma como organizamos nossas próprias instituições.
John McCain sabia que a política não se faz de cima para baixo — nem no grito, nem na bala.
Rejeitou a política da mistificação, jamais aderiu a rótulos para carimbar o adversário, e nunca cedeu à política do bizarro.
Isto sim requer peito. Esta sim é a verdadeira coragem.
É por isso que teve o funeral de um rei.