O psicólogo americano Jonathan Haidt, de 60 anos, acredita que a consciência humana está mudando – e para pior.
Crianças e adolescentes, em particular, são hoje mais deprimidos e propensos à automutilação e ao suicídio do que eram na primeira década do século.
A causa dessa transformação, diz Haidt, é o smartphone. Para a garotada, o celular equipado com apps de redes sociais teria se tornado um portal de bolso para a ansiedade e a depressão.
Haidt expõe essa tese em A geração ansiosa – Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (tradução de Lígia Azevedo; Companhia das Letras; 440 páginas), um dos livros mais discutidos do ano. Com lançamento no Brasil previsto para 16 de julho, a obra já está em pré-venda.
“Existe um longo histórico de pesquisas acadêmicas interessantes sobre como ferramentas mudam nossa consciência”, Haidt disse à revista The New Yorker. Ele mesmo deu seguimento a essa tradição, ao atribuir às telinhas o súbito aumento da incidência de distúrbios mentais que, a partir de 2012, se verificou entre adolescentes americanos (sobretudo garotas).
Essa epidemia também afetou Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia, Austrália e países escandinavos, entre outras nações. Trata-se de um fato bem documentado.
Apenas suas causas ainda são debatidas. Há quem as busque não nas inovações tecnológicas, mas em fatores sociais ou econômicos – por exemplo, na crise econômica dos subprimes, que, no entanto, eclodiu quatro anos antes, em 2008.
Haidt argumenta que foi a dupla revolução do smartphone e das redes sociais que abriu essa crise na infância e na juventude. Essa hipótese é rigorosamente amparada em pesquisas e dados.
O mal estar da juventude apareceu no livro anterior de Haidt, The coddling of the American mind (2018), escrito em parceria com o advogado e ativista da liberdade acadêmica Greg Lukianoff. O tema ali era mais político – a crescente limitação à liberdade de pensamento nas universidades americanas –, mas Haidt já apontava para a fragilidade psicológica da geração que então ocupava os bancos universitários como uma fator determinante para a ascensão do que mais tarde se chamaria de “cultura do cancelamento”.
A geração ansiosa não se limita à análise do problema. O autor apresenta soluções simples para tirar as crianças da telinha, encorajando-as a voltar à rua para brincar com amigos. Também defende que os celulares sejam banidos da sala de aula e que o acesso às redes sociais seja legalmente limitado a maiores de 13 anos.
Haidt não é um ludita pregando a demolição dos teares do Vale do Silício. Seu livro pretende apenas alertar legisladores, professores e sobretudo pais dos perigos a que crianças e adolescentes estão expostos quando têm acesso ilimitado a celulares e tablets.
“Que pais deixariam sua filha exposta a três horas diárias de algo que comprovadamente aumenta em três vezes o risco de depressão?”, provocou o psicólogo em uma conversa com o cientista político Yascha Mounk, no site Persuasion.
Abaixo, o Brazil Journal antecipa excertos de A geração ansiosa, onde Haidt explica o que chama de “a Grande Reconfiguração da Infância” e aponta as mudanças tecnológicas que a tornaram possível.
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Os adolescentes da geração Z passaram muito menos tempo brincando, conversando, tendo contato com seus amigos e parentes, ou até mesmo fazendo contato visual com eles, o que reduziu suas interações sociais corporificadas e essenciais para o bom desenvolvimento humano.
Os membros da geração Z são, portanto, cobaias de uma maneira radicalmente nova de crescer e que é muito distante das interações em comunidades pequenas no mundo real a partir das quais os humanos evoluíram. Podemos chamar esse fenômeno de Grande Reconfiguração da Infância.
[…]
Uma mudança transformacional na natureza das redes aconteceu por volta de 2010, tornando‑as mais prejudiciais aos jovens. Nos primórdios de Facebook, Myspace e Friendster (todos fundados entre 2002 e 2004), chamávamos esses serviços de sistemas de networking social, porque tratavam principalmente de conectar indivíduos, como antigos colegas de ensino médio ou fãs de uma banda. No entanto, por volta de 2010, houve uma série de inovações que modificaram esses serviços.
Em primeiro lugar, e o mais importante, em 2009, o Facebook introduziu o “curtir”, e o Twitter, o “retuíte”, inovações imitadas por outras plataformas, tornando possível a disseminação viral de conteúdo. Essas inovações quantificavam o sucesso de cada publicação e incentivavam usuários a causar o máximo de impacto, o que às vezes implicava fazer comentários mais extremos ou expressar mais raiva e aversão. Ao mesmo tempo, o Facebook começou a usar feeds de notícias selecionadas por algoritmo, logo seguido por outras plataformas, que escolhiam conteúdos com maiores chances de engajamento. As notificações na tela inicial do celular foram introduzidas em 2009, mantendo o usuário engajado o tempo todo. As lojas de aplicativos trouxeram novas plataformas baseadas em anúncios para os smartphones. As câmeras frontais (2010) facilitaram tirar fotos e vídeos de si mesmo. E a internet de alta velocidade se disseminou de maneira acelerada (atingindo 61% dos lares americanos em janeiro de 2010), facilitando o consumo rápido de tudo.
No início da década de 2010, os sistemas de “networking” social que haviam sido (majoritariamente) estruturados para conectar pessoas se transformaram em “plataformas” de rede social, repensadas (majoritariamente) para incentivar performances públicas de um para muitos em busca de validação não só de amigos, mas de desconhecidos. Até usuários que não publicam ativamente são afetados pelas estruturas de incentivo desses aplicativos.
Essas mudanças explicam por que a Grande Reconfiguração teve início por volta de 2010 e por que estava concluída em 2015. Crianças e adolescentes, que passavam cada vez mais tempo em casa, isolados pela mania nacional de superproteção, se voltaram cada vez mais para sua coleção cada vez maior de dispositivos com internet, que ofereciam recompensas cada vez mais atraentes e variadas. A infância baseada no brincar chegava ao fim; era o início da infância baseada no celular.
O custo de oportunidade da infância baseada no celular
Vamos supor que um vendedor de uma loja de eletrônicos lhe diz que tem um produto novo para entreter sua filha de 11 anos — mais até que a televisão —, sem efeitos colaterais de qualquer tipo, mas com benefícios mínimos além de entretenimento. Quanto esse produto valeria para você?
É impossível responder a essa pergunta sem saber o custo de oportunidade. Economistas definem esse termo como a perda de outros ganhos em potencial ao se escolher determinada alternativa. Vamos supor que você vai abrir um negócio e está pensando em desembolsar 2 mil dólares para fazer um curso de design gráfico em uma universidade local, para incrementar o material de marketing da empresa. Você não pode se perguntar apenas se folhetos e sites mais atraentes fariam com que os 2 mil investidos retornassem a você. É preciso considerar todas as outras coisas que você poderia ter feito com o dinheiro — e, talvez o mais importante, de que outra maneira você poderia ter contribuído para o negócio com o tempo que investiu no curso.
Assim, quando o vendedor diz que o produto é grátis, você deve se perguntar sobre o custo de oportunidade. Quanto tempo uma criança média dedica ao produto? Cerca de quarenta horas por semana, no caso de pré‑adolescentes como sua filha, segundo ele. Entre 13 e 18 anos, mais para cinquenta horas por semana. Isso não faria você ir embora da loja?
Esse tempo — de seis a oito horas por dia — é o que os adolescentes dedicam a todas as atividades de lazer baseadas em telas. É claro que crianças já passavam grande parte do tempo vendo TV e jogando videogame antes que os smartphones e a internet se tornassem parte de seu cotidiano. Estudos de longo prazo demonstraram que o adolescente americano médio assistia a um pouco menos de três horas diárias de TV no início dos anos 1990. Com a maioria das famílias obtendo acesso à internet discada nessa década e à internet banda larga na seguinte, o tempo gasto em atividades na internet aumentou, enquanto diminuiu aquele vendo TV. As crianças também começaram a passar mais tempo jogando videogame e menos lendo livros e revistas.
Somando tudo, a Grande Reconfiguração e a ascensão da era da infância baseada no celular parecem ter acrescentado de duas a três horas de atividades baseadas em telas, na média, ao dia da criança. Esses números variam de acordo com classe social (são mais altos entre as famílias de baixa renda que entre as famílias de alta renda), raça (são mais altos entre as famílias negras e latinas que entre as famílias brancas e asiáticas) e status de minoria sexual (são mais altos entre jovens LGBTQIAP+).
Os esforços dos pesquisadores para medir o tempo de tela provavelmente erram para menos. Com uma pergunta ligeiramente diferente, o Pew Research descobriu que um terço dos adolescentes diz estar “quase sempre” em uma das principais redes, e 45% dos adolescentes relataram usar a internet “quase sempre”.
Então mesmo que o adolescente médio relate “apenas” sete horas de lazer com telas por dia, considerando todo o tempo que eles passam pensando nas redes sociais enquanto fazem outras coisas no mundo real, dá para entender por que quase metade dos adolescentes diz ficar online quase o tempo todo. Isso significa cerca de 16 horas ao dia — 112 na semana — em que não estão totalmente presentes, independentemente do que estiver acontecendo à sua volta.
Esse tipo de uso contínuo muitas vezes envolvendo duas ou três telas ao mesmo tempo não era possível antes que telas sensíveis ao toque coubessem nos bolsos das crianças. Ele tem implicações gigantescas na cognição, no vício e na abertura de caminhos no cérebro pelo uso, sobretudo durante o período sensível da puberdade.