BOSTON – O Guia Michelin avalia restaurantes baseando-se em critérios como qualidade dos produtos, domínio do sabor e das técnicas de cozinha, personalidade do chef em sua culinária, relação qualidade-preço e consistência entre as visitas.
Mas quando a empresa vai decidir qual nova cidade ou região será avaliada, o critério é mais simples e direto: dinheiro.
Apesar de ser o mais respeitado guia gastronômico do mundo, o Michelin não conseguiu escapar de polêmicas nos últimos anos devido ao preço que cobra para levar seus críticos a determinadas regiões do planeta – que muitas vezes destinam dinheiro público para que a gastronomia local seja avaliada pela lente da fabricante de pneus.
Um crítico do Guia disse ao Brazil Journal que novas cidades ou região são escolhidas após uma equipe de inspeção da Michelin determinar que a “cena culinária de uma região é suficientemente desenvolvida para justificar a seleção de restaurantes,” e que “se houver restaurantes em número suficiente oferecendo culinária de alta qualidade, inicia-se o processo para que o Guia seja estabelecido nessa região.”
Apesar do discurso bonito e meritocrático, na prática o Guia não funciona assim. Prefeituras, governos regionais e escritório de turismo desembolsam milhões para que a Michelin envie seus críticos como forma de incentivar o turismo local.
O Atlanta Convention and Visitors Bureau pagou US$ 1 milhão para ter o Guia na cidade por três anos, enquanto seis escritórios de turismo do Texas pagaram um total de US$ 2,7 milhões à Michelin ao longo de três anos para que o Estado recebesse o guia.
Restaurantes de Los Angeles só começaram a ser avaliados pela empresa francesa em 2019, depois que o escritório de turismo Visit Los Angeles pagou US$ 600 mil. De 2007 até 2019, apenas restaurantes da região da baía de San Francisco e Napa Valley eram avaliados.
Um caso simbólico do descompasso entre a criteriosa avaliação dos restaurantes com a escolha das regiões agraciadas ocorreu no Colorado. O restaurante Annette, na cidade de Aurora, ficou fora do Guia após seu município não ter entrado no grupo que ajudou a bancar a vinda da Michelin ao Estado, mesmo a cidade estando na região metropolitana de Denver.
O restaurante foi vencedor do prêmio da James Beard Foundation, um dos mais importantes prêmios da gastronomia americana, e considerado um dos responsáveis pelo desenvolvimento da cena gastronômica local, o que não o impediu de ficar de fora da área de avaliação do Guia.
Agora a Michelin prepara sua chegada a Boston e Filadélfia, algumas das cidades mais antigas dos Estados Unidos e que irão compor o Guia das cidades do nordeste americano, que inclui também Nova York, Chicago e Washington.
Segundo o crítico da Michelin, as duas cidades atingiram “certo nível de maturidade tanto na oferta culinária quanto no dinamismo da indústria, tornando a cena gastronômica dessas cidades digna de ser o mais novo destino do Guia.”
A entidade terá uma postura diferente daquela adotada no Colorado, e irá além dos limites das cidades caso algo “excepcional” seja encontrado, disse o crítico.
Mas afinal, qual é o nível atual da culinária das duas cidades? Um bom termômetro são as premiações da James Beard Foundation e a lista dos 50 Best, da revista britânica Restaurant.
Em 2025, o único vencedor de Filadélfia ou Boston a figurar entre os ganhadores do James Beard foi o chef Phila Lorn, do Mawn, um restaurante de comida do Camboja. Segundo a premiação, o melhor restaurante da região que inclui Boston está em Providence, no Estado de Rhode Island, enquanto o melhor restaurante da região que inclui a Filadélfia está em Washington.
Na lista dos 50 melhores restaurantes da América do Norte, a Filadélfia emplacou três, incluindo o sétimo melhor, enquanto Boston esteve ausente da lista.
Se a Filadélfia parece ter uma “cena culinária suficientemente desenvolvida” para justificar a chegada do Guia, Boston parece estar alguns passos atrás.
A chegada do Guia em Boston foi financiada pelo escritório de turismo Meet Boston, em parceria com o escritório de turismo da cidade de Cambridge – a cidade irmã de Boston que abriga Harvard e MIT.
Oficialmente as entidades não revelam o valor pago aos franceses, mas segundo o “Boston Globe”, o Meet Boston pagou US$ 1 milhão à Michelin para ter o Guia por três anos.
“Minha esperança é que a presença do Michelin em Boston crie uma cena gastronômica mais talentosa e competitiva. Espero que chefs e restaurantes estejam à altura do desafio, na tentativa de colocar Boston no mapa internacional da gastronomia,” disse o chef do restaurante Baleia, Andrew Hebert.
A visão é compartilhada por Daniel Roughan, dono do restaurante Source, que acredita que a chegada do Guia irá “acender algumas chamas em Boston.”
“Acho que inicialmente vai haver um impulso na forma como as pessoas estão empratando, na execução dos pratos que apresentam e em suas habilidades de serviço. Acredito que certamente haverá esse estímulo inicial e espero que ele continue,” disse Roughan.