Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, um artigo tem chamado atenção nos grupos de Whatsapp por analisar as raízes históricas do conflito e as potenciais saídas para o perigo nuclear que o mundo vive.

O texto é de Henry Kissinger, aquele promissor diplomata hoje prestes a completar 99 anos. 

11944 559a3af8 520b 53df 54f9 80ac52efcaceNos anos 70, Kissinger foi o-di-a-do por todo mundo que amava os Beatles e os Rolling Stones enquanto – nos versos imortais de Mauro Lusini, famosos no Brasil pelos Engenheiros do Hawaii – os amigos eram “mandados ao Vietnã lutar com vietcongs.” 

Mas Kissinger é muito mais que essa caricatura, e teve uma das vidas mais consequentes do século 20.

Depois de fugir da Alemanha nazista com sua família em 1938, Heinz Alfred Kissinger tornou-se um cidadão americano. Foi nomeado Conselheiro de Segurança Nacional em 1969 e Secretário de Estado em 1973. 

Nesse período, abriu relações com a China, iniciou um degelo com a União Soviética e fez a chamada ‘shuttle diplomacy’ para acabar com a Guerra do Yom Kippur.  Os Acordos de Paz de Paris, que ele negociou, encerraram o envolvimento americano no Vietnã.

O texto sobre a Ucrânia é pura Realpolitik de Kissinger, e seria a melhor descrição de tudo que o mundo hoje assiste consternado na CNN… não fosse pelo fato de ter sido escrito oito anos atrás.

Um texto que envelheceu assim merece ser republicado. A tradução é de Cris Silva, em Washington.

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Para resolver a crise na Ucrânia, comecemos pelo fim

5 de março de 2014

Henry Kissinger

A discussão pública sobre a Ucrânia tem tudo a ver com confronto. No entanto, como saber que rumo a situação irá tomar? Durante a minha vida, assisti a quatro guerras começarem com grande entusiasmo e apoio do público. Em todas essas guerras, não sabíamos como a situação terminaria – em três delas, nos retiramos unilateralmente. O teste da política é como ela termina, não como começa.

Bastante frequentemente, a situação na Ucrânia é apresentada como confronto: a Ucrânia deve se juntar ao Oriente ou ao Ocidente? No entanto, para que a Ucrânia sobreviva e prospere, não deve ser posto avançado de nenhum dos lados contra o outro – deve sim, funcionar como elo entre eles.

A Rússia deve aceitar que tentar forçar a Ucrânia a status de satélite e, dessa maneira, mover novamente as fronteiras da Rússia, condenaria Moscou a repetir a história de ciclos que se cumprem a si mesmos de pressões recíprocas com a Europa e os Estados Unidos.

O Ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca será mero país estrangeiro. A história russa começou com o que se chamou de a Rússia de Kiev (Kievan-Rus) e, a partir daí, a religião russa se disseminou. A Ucrânia faz parte da Rússia há séculos, e as histórias dos dois países estiveram entrelaçadas muito antes disso. Algumas das batalhas mais importantes pela liberdade russa, começando pela Batalha de Poltava, em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A Frota do Mar Negro – mecanismo de projeção da Rússia no Mediterrâneo – se baseia em um arrendamento de longo prazo em Sebastopol, na Crimeia. Até mesmo dissidentes famosos, como Aleksandr Solzhenitsyn e Joseph Brodsky, insistiram que a Ucrânia era parte integrante da história russa e, por conseguinte, da Rússia.

A União Europeia deve reconhecer que sua lentidão burocrática e subordinação do elemento estratégico à política interna na negociação da relação da Ucrânia com a Europa contribuíram para transformar uma negociação em crise. A política externa é a arte de estabelecer prioridades.

Os ucranianos são o elemento decisivo e moram em um país com uma história complexa e uma composição poliglota. A parte ocidental foi incorporada à União Soviética em 1939, quando Stalin e Hitler dividiram os despojos de guerra. A Crimeia, onde 60% da população é russa, se tornou parte da Ucrânia apenas em 1954, quando Nikita Khrushchev, ucraniano de nascimento, a concedeu como parte da celebração do tricentenário de um acordo russo com os cossacos. Em grande parte, o oeste é católico; enquanto o leste é, na sua maioria, ortodoxo russo. No ocidente do país, se fala ucraniano; no leste, se fala principalmente o russo. Qualquer tentativa de um lado da Ucrânia de dominar o outro — como tem acontecido — levaria a eventual guerra civil ou separação. Tratar a Ucrânia como parte de um confronto entre o Leste e o Oeste arruinaria por décadas qualquer perspectiva de aproximar a Rússia e o Ocidente – especialmente a Rússia e a Europa – a um sistema internacional cooperativo.

A Ucrânia conquistou a independência há apenas 23 anos; anteriormente, esteve sob algum tipo de domínio estrangeiro desde o século XIV. Não é de se surpreender que seus líderes não tenham aprendido a arte da negociação e, muito menos, a perspectiva histórica. A política da Ucrânia pós-independência demonstra claramente que a raiz do problema está nas iniciativas de políticos ucranianos de impor sua vontade a partes obstinadas do país, primeiro por meio de uma facção, depois pela outra. Essa é a essência do conflito entre Viktor Yanukovych e sua principal rival política, Yulia Tymoshenko. Eles representam dois lados da Ucrânia e não estão dispostos a dividir o poder. Uma política inteligente dos EUA em relação à Ucrânia buscaria cooperação entre as duas partes do país. Devemos buscar a reconciliação e não a dominação de uma facção.

A Rússia e o Ocidente e, menos ainda, as várias facções na Ucrânia, não agiram de acordo com esse princípio. Cada uma piorou a situação. A Rússia não conseguiria impor uma solução militar sem se isolar em um momento no qual muitas de suas fronteiras já são precárias. Para o Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política; e sim um álibi para a ausência de política.

Putin deve perceber que, quaisquer que sejam suas queixas, uma política de imposições militares produziria outra Guerra Fria. Por sua parte, os Estados Unidos precisam evitar tratar a Rússia como aberração que tenha que aprender pacientemente as regras de conduta estabelecidas por Washington. Putin é um estrategista sério – nas premissas da história russa. Entender os valores e a psicologia dos EUA não são seus pontos fortes. Entender a história e a psicologia russa também não foi ponto forte dos políticos americanos.

Líderes de todos os países devem voltar a examinar os resultados, não competir em postura política. Aqui estão minhas ideias de um resultado compatível com os valores e interesses de segurança de todos os lados:

1. A Ucrânia deve ter o direito de escolher livremente suas associações econômicas e políticas, inclusive com a Europa.

2. A Ucrânia não deve aderir à OTAN, um posicionamento que assumi há sete anos, quando isso foi discutido pela última vez.

3. A Ucrânia deve ser livre para criar qualquer governo compatível com a vontade expressa pelo povo. Os sábios líderes ucranianos optariam por uma política de reconciliação entre as várias partes do país. Internacionalmente, eles devem adotar uma postura comparável à da Finlândia, nação que não deixa dúvidas sobre sua violenta independência e coopera com o Ocidente na maioria dos casos, mas evita cuidadosamente a hostilidade institucional em relação à Rússia.

4. A Rússia anexar a Crimeia é incompatível com as regras existentes da ordem mundial. No entanto, deve ser possível diminuir as tensões no relacionamento da Crimeia com a Ucrânia. Para esse propósito, a Rússia deveria reconhecer a soberania da Ucrânia sobre a Crimeia. A Ucrânia deveria reforçar a autonomia da Crimeia nas eleições realizadas na presença de observadores internacionais. O processo incluiria a remoção de quaisquer ambiguidades sobre o status da Frota do Mar Negro, em Sebastopol.

Estes são princípios e não fórmulas. Os entendidos sobre a região saberão que nem todos estes princípios serão aceitos por todas as partes. O teste não é a satisfação absoluta, mas a insatisfação equilibrada. Se uma solução com base nesses elementos ou em elementos comparáveis não for alcançada, a tendência ao confronto se acelerará. Este momento chegará em breve.