O Brazil Journal publica hoje o segundo excerto de “Lições Amargas: Uma História Provisória da Atualidade” (História Real, 256 páginas, R$ 49,90), o livro de Gustavo Franco que discute o Brasil e suas autossabotagens.
No trecho de hoje, Gustavo se aprofunda na abertura da economia, que ele considera a reforma “mais transcendente” dentre todas as que o País vem discutindo nos últimos anos.
“O isolacionismo é uma política econômica fracassada e uma estratégia que faz mal ao país,” escreve o economista.
“Mais extraordinário que o Brasil chegar a 2017 ainda em último lugar no mundo no quesito “grau de abertura”, é o país continuar a pensar da mesma forma sobre a sua inserção internacional, apesar de estar com a produtividade estagnada há 40 anos e estar entrando na quinta década perdida, com multinacionais nos deixando para operar na República Atlântica.”
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De todas as reformas que o país vem discutindo nos últimos anos, com as tranqueiras que se conhece, a mais transcendente e, talvez por isso mesmo, a que registrou menos avanços, é a da abertura. O isolacionismo e o protecionismo são vícios antigos, e muito parecidos com a inflação, sobretudo no modo como tantas forças poderosas se organizam para defendê-la sem que ninguém apareça na fotografia.
Quem deriva benefícios dessas criaturas sempre prefere defender o status quo com discrição, no escurinho do cinema. O sujeito que é amigo da família Corleone não quer brigar, mas, em geral, não gosta de aparecer junto com eles nas colunas sociais.
A malandragem brasileira nesse assunto reside em imitar uma tática consagrada dos amigos da inflação: jamais defender abertamente o seu credo, apenas questionar os seus inimigos, oferecer uma crítica amiga às propostas deles, ainda que não necessariamente sensata, a fim de induzi-los a ficar na defesa. Além disso, é fundamental declarar-se sempre um apóstolo da abertura, e das boas causas em geral.
Em razão dessa tática, adotada de forma generalizada pelos potentados do atraso, é difícil encontrar partidários da inflação ou do protecionismo. Não são boas causas. Vamos achar muitos críticos da “estabilização ortodoxa” da “responsabilidade fiscal (austeridade)”, bem como da “abertura indiscriminada” e da “obsessão pela competitividade (produtividade)”, mas jamais o elogio à inflação ou à fechadura.
Muitos reconhecem, inclusive em cores fortes, que o Brasil é muito fechado, e há muitos enredos para uma “abertura benigna”, aquela que é tão lenta que ninguém nota. O enredo conquistou, inclusive, o ministro Paulo Guedes, cuja posição nesse assunto é simples: “o governo é liberal, mas não ‘trouxa’, e que, por isso, antes da abertura comercial é necessário melhorar as condições de competitividade da produção nacional […] Não podemos soltar um animal de cativeiro e achar que ele vai competir. Temos de treinar na selva. Tínhamos de fazer uma abertura gradual, mas segura e inexorável.” Claro que há muito pragmatismo nessa opção, e que a abertura foi sacrificada em favor de outras pautas.
Há um claro viés “aberturista” na equipe de Guedes, sobretudo em comparação com a época de Dilma Rousseff. Existe “uma tentativa de dar uma racionalidade” – como descreve Sandra Rios, especialista renomada – e um esforço evidente de evitar retrocessos. Mas não houve abertura, nem progressos relevantes, nessa direção nos últimos anos. Houve menos ações antidumping, mas a determinação do presidente para o ministro Guedes em 2019, de reverter o cancelamento de medidas contra o leite em pó importado da Nova Zelândia, deixou uma má impressão. Na mesma linha, foi assinado um acordo comercial entre Mercosul e a União Europeia, depois de muitos anos de negociação, mas, infelizmente, o assunto travou na homologação e não tem horizonte de solução. Fora isso, nada a reportar nessa frente.
Em razão da malandragem acima identificada, resta claro que o protecionismo brasileiro, como o inflacionismo, foi um tanto além de Samuel Johnson, o autor do célebre comentário segundo o qual o patriotismo é o último refúgio do canalha. Johnson pensava no indivíduo capaz de falsificar a identificação entre seus interesses pessoais e os da nação. Não deve haver dúvida que todos os protecionismos têm essa característica. O que distingue a cepa brasileira, contudo, é o drible acima descrito, ou seja, a fórmula particularmente hipócrita e insidiosa de ludibriar o debate sobre os males que a fechadura faz ao Brasil através da crítica recorrente ao ritmo da abertura.
O isolacionismo é uma política econômica fracassada e uma estratégia que faz mal ao país. Se o protecionista/protegido deriva vantagem desse estado de coisas, ele pertence à região BI, numa referência às leis da estupidez de Carlo Cipolla, que reúne os bandidos ou corruptos como tonalidades de inteligência, ou socialmente úteis, como descrito lá.
O fato é que, dessa maneira, o Brasil tem insistido em autossuficiência e substituição de importações mais até do que em choques heterodoxos. Com resultados parecidos.
É claro que isso não pode funcionar indefinidamente, pois nem mesmo no Brasil essas coisas podem durar para sempre. Também era difícil de se imaginar Brasília sem a inflação, que era um meio de vida para muita gente poderosa, exatamente como se passa com o protecionismo e com a política industrial. Contudo, mais dia menos dia, o Brasil vai deixar de ser uma economia fechada. Só é preciso que as estrelas se alinhem.
Mais extraordinário que o Brasil chegar a 2017 ainda em último lugar no mundo no quesito “grau de abertura”, é o país continuar a pensar da mesma forma sobre a sua inserção internacional, apesar de estar com a produtividade estagnada há 40 anos e estar entrando na quinta década perdida, com multinacionais nos deixando para operar na República Atlântica. Tudo escolha nossa. Errada, mas nossa. Tivemos o que procuramos. Infelizmente, estamos perdendo um prestígio que demoramos a acumular e que não tem a ver propriamente com a economia, nem com o nosso poderio militar. A influência internacional do Brasil, amiúde referida como “soft power”, tem a ver com a cultura, com o trato gentil, com a prosa, a poesia e a música, bem como com o gosto por evitar encrenca. Como será a vida sem esse soft power, que parece se esvair a cada dia?
Para responder, me ocorre uma tirada clássica do reitor da Universidade de Harvard, o professor Derek Bok, a propósito de queixas sobre o alto custo da educação superior nos EUA. Se você acha que educação é cara, disse ele, experimente a ignorância. Pois então, a pergunta para quem acha que soft power não tem importância é simples: experimente não ter, e veja como vai sair caro. Não é culpa da nossa diplomacia, que costuma oferecer um exemplo internacional de profissionalismo e competência, inclusive para defender o indefensável. Ao menos até o momento em que os chanceleres começaram a fazer política externa pensando no noticiário interno e na guerra cultural, um problema que começou bem antes de Jair Bolsonaro.
Não é fácil ser um profissional de relações internacionais quando seu país acredita que não é bom ter relações internacionais, pois elas aumentam “a dependência externa”. Deve ser uma vida muito sacrificada a do diplomata brasileiro, pois sua matéria-prima é pouca, e veio se reduzindo com o tempo.
Mais recentemente, a onda populista trouxe uma penca de ideias novas, de teor nacionalista, dirigidas, em particular contra o “globalismo”. Na definição do ex-chanceler Ernesto Araújo, o globalismo é “a globalização pilotada pelo marxismo cultural”. Não sei bem o que é isso, mas sem dúvida parece hostil à ideia de abertura e de participação mais ativa do país no comércio e na indústria global. Ao fim das contas, o Brasil teve pouca exposição à globalização, em se tratando de comércio internacional, como longamente argumentado neste capítulo. Isso foi uma lástima, pagamos um preço alto pela opção nacionalista, e não se pode deixar de reparar que os populismos do hemisfério norte tiveram como uma de suas motivações mais relevantes a diatribe contra os efeitos da globalização. Aqui no Brasil não tivemos esses efeitos, portanto não era para copiar essa retórica.
De forma assemelhada, a implicância com as elites burocráticas internacionais é um assunto meio vazio para nós. Pode ser importante para os ingleses que reclamam dos custos e da intromissão da burocracia da União Europeia. Nós não temos essa reclamação do Mercosul, nem nada parecido. Não há nenhuma burocracia internacional nos atrapalhando, temos errado soberanos, guiados pelas nossas próprias ideias tortas.
Tenho enorme simpatia pelos nossos diplomatas que precisam explicar o Brasil no exterior. Tarefa ingrata, e particularmente complexa para os economistas, sobretudo os que passeiam entre investidores estrangeiros, essas criaturas exigentes, cheias de manias referentes às melhores práticas internacionais.
Tive experiências mirabolantes nessa prática, especialmente quando estava no serviço público e precisava explicar aos interessados no Brasil, inclusive os investidores locais, talvez ainda mais exigentes que os estrangeiros, que a economia estava em perfeita saúde, mesmo exibindo taxas de inflação de 30% ao mês. Em retrospecto, eu confesso, era ridículo.
Dizia que a indexação era generalizada, que a inflação tinha pouco efeito nos preços relativos e variáveis reais, ou seja, dizia que a inflação brasileira era “normal” ou “neutra”, e que o viciado tinha controle sobre o vício, e outras tantas coisas que me envergonho de repetir. Tudo para não violar um mandamento muito antigo, anterior mesmo à Constituição de 1988, segundo o qual não se deve falar mal do Brasil em outro idioma. Há assuntos amargos que dizem respeito apenas a nós.
Pois bem, os responsáveis pelas nossas relações internacionais encontram-se diante de um problema semelhante: nosso grau de abertura é nada menos que indesculpável e defendê-lo nos coloca firmemente no terreno do grotesco.
Muitos acham que a pandemia destruiu a globalização, bem como as cadeias internacionais de valor, e acabou com a agenda da abertura. Vai ser mais um ângulo a ser explorado pelo protecionismo brasileiro; há décadas que eles se comportam como se os anos 1930 fossem se repetir, mas não foi o que se passou. Como serão os 2020? Como os 1930? Como os 1920? Ou diferente de qualquer coisa do século passado e acelerando tendências já visíveis?
Mais que nunca, e por bom motivo, o mundo parece um grande condomínio de gente preocupada com o que o vizinho anda fazendo, seja na área sanitária, no meio ambiente ou na economia. É claro que importa o que o vizinho está fazendo com a sua economia, pode ser problema ou oportunidade, todos estamos atentos.
Nessa linha, o mundo ficou mais globalizado do que antes, pois a pandemia acentuou a ideia de um “mundo plano”, não o terraplanismo estrito, ou a crença de que o planeta não é redondo, mas no sentido que Thomas Friedman deu ao termo ao intitular um de seus livros dessa forma. A pandemia equalizou o desafio e criou uma espécie de competição, inclusive entre províncias e cidades de um mesmo país, sobre quem poderá lidar melhor com o problema.
A globalização agora se parece com um ranking, um concurso de beleza, uma competição sobre melhores práticas. Não há como escapar da comparação: eis um dos aspectos mais interessantes da ideia de globalização, a soberania para fazer besteira está diminuída. Nada a opor a esse conceito.
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