Na Itália, as comédias escrachadas típicas de fim de ano são chamadas de “panetones”, bem ao estilo de nossos pastelões natalinos.
Não chega a ser o caso de Casa Gucci, mas o inglês Ridley Scott fez da saga melodramática dos fundadores da marca italiana uma sátira divertida, recheada de estrelas e empacotada num figurino elegantérrimo e em sets de encher os olhos.
Os críticos mais ranzinzas não gostaram, mas o filme, inspirado no livro “A Casa de Gucci: uma história de glamour, ganância, loucura e morte”, da jornalista Sarah Gay Forden, é um ótimo programa para o entretenimento descompromissado – ainda mais depois do longo inverno pandêmico.
A história de “glamour, ganância, loucura e morte” começa numa festa em Milão, no início dos anos 1970. O jovem Maurizio Gucci (Adam Driver), conhece a alpinista social Patrizia Reggiani (Lady Gaga), que nunca conheceu o pai e cujo padrasto era proprietário de uma modesta empresa de cargas.
Dias depois, ela o convence a marcar um encontro. Tem início um namoro que o pai de Maurizio, Rodolfo Gucci (Jeremy Irons), logo fareja ser um bad romance. A moça era do tipo que confundia Klimt com Picasso.
Rodolfo, que controlava a marca ao lado do irmão Aldo (Al Pacino), expulsa o filho de casa. Mas Patrizia trata de aproximar Aldo de Maurizio, que se muda para Nova York e começa a se envolver diretamente no negócio. Alguns golpes baixos e traições mais tarde, Maurizio escanteia o tio Aldo e o primo Paolo (Jared Leto).
A Gucci, revigorada pelo trabalho de um jovem e talentoso designer texano chamado Tom Ford, atrai uma nova legião de fashionistas.
A família Gucci, era de se esperar, torceu o nariz para o filme. A neta de Aldo disse que Pacino — “gordo, baixo, com costeletas, muito feito” — fica a anos-luz da beleza e da elegância do avô. Os descendentes não gostaram nem um pouco de ver a história da família ser contada como uma versão burlesca de O Poderoso Chefão.
Já Tom Ford, diretor criativo da marca até 2005, disse que deu boas risadas assistindo ao filme. Elogiou a atuação de Lady Gaga e Adam Driver, reconheceu a beleza da fotografia e comentou que o figurino é “impecável” – mas confessou que o filme o deixou triste por alguns dias.
Faz tempo que a família não apita nada no negócio fundado em Florença pelo patriarca Guccio Gucci há exatos 100 anos.
Em 1999, a marca foi comprada pelo grupo francês Pinault-Printemps-Redoute, hoje Kering – cujo CEO, aliás, é François-Henri Pinault, marido de Salma Hayek, uma das estrelas do filme. É um sinal de que os atuais donos da marca não impuseram obstáculos ao filme.
Além do mais, Jared Leto é amigo do atual diretor criativo da Gucci, o maximalista Alessandro Michele. O estilista romano diz que o ator é uma das suas fontes de inspiração. (Só não se sabe se o camaleônico Leto teve a ajuda do amigo para criar sua impagável incorporação de Paolo Gucci.)
Ridley Scott tinha o projeto de fazer o filme há 15 anos. Foi sua mulher, uma costarriquenha de origem italiana, que lhe apresentou o livro. Scott viu ali o potencial de rodar uma comédia sobre dilemas ancestrais não apenas dos italianos, mas da humanidade.
“A história dos Gucci é como a dos Borgia e dos Medici: matavam-se uns aos outros para prosperar”, Scott disse em uma entrevista. “O amor, a paixão, os ódios… São os motores do mundo século após século. Não aprendemos com os tempos passados.”
Scott ecoa a famosa fala de Orson Welles, na pele do personagem Harry Lime, no filme O Terceiro Homem: “Na Itália, durante 30 anos sob o comando dos Borgia, houve guerra, terror, assassinatos, banho de sangue, mas eles produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, eles tiveram amor fraternal, 500 anos de democracia e paz. E o que eles produziram? O relógio cuco.”
Pouco importa que esses relógios, na verdade, tenham sido criados provavelmente por artesãos da Floresta Negra, na antiga Prússia. A tirada é uma das mais geniais da história do cinema – e, assim como Casa Gucci, ajuda a nos lembrar de que a Itália não é para principiantes.