Hoje faz três semanas que o Congresso Nacional aprovou um orçamento que não é passível de ser executado respeitando as regras fiscais vigentes, em especial o teto de gastos, a regra que estabelece que a despesa não financeira do governo central só poderá crescer de acordo com a inflação até 2026.
Vale lembrar que a regra do teto tem uma válvula de escape para eventos inesperados como uma pandemia. Por exemplo, no ano passado, o governo federal teve uma despesa extra de mais de R$ 500 bilhões com a covid mas respeitou o teto: as despesas foram autorizadas como crédito extraordinário, uma forma de lidar com eventos imprevisíveis e ainda respeitar a regra.
O problema deste ano é diferente.
Agora, além dos gastos com a pandemia, que podem ser justificados como imprevisíveis porque o orçamento aprovado não contemplava uma piora tão forte nos novos casos e mortes ligadas à pandemia, os parlamentares querem algo a mais: uma verba maior do orçamento (emendas) para obras em suas respectivas regiões.
O problema é que o espaço para gastos este ano é apertado porque o orçamento foi corrigido pela inflação de 2,1%, o que significa um crescimento do teto de apenas R$ 31 bilhões, enquanto a demanda por despesas é muito superior.
O problema é simples, mas de difícil solução.
Há poucos dias, antes da aprovação do orçamento, o Ministério da Economia refez as contas de projeção do crescimento da despesa e descobriu que, para respeitar o teto, a despesa discricionária (onde aparece o investimento) deveria ser cortada em R$ 17 bilhões para o orçamento deste ano ficar compatível com o teto.
No entanto, o Congresso alega que não foi comunicado formalmente e, ao invés de cortar as despesas discricionárias em R$ 17 bilhões, adicionou R$ 30 bilhões em emendas do relator que “não cabem no teto”.
Assim para forçar o encaixe dessas emendas no ínfimo espaço fiscal, os parlamentares decidiram re-estimar — para baixo — as despesas obrigatórias, um truque fiscal não muito diferente de outros do passado.
Como corrigir isso? Os parlamentares não querem abrir mão das emendas do relator, alegando que por trás dessas emendas há acordos políticos feitos para aprovação de pautas de interesse do Executivo.
Mas mesmo se os parlamentares concordassem em cortar pela metade as emendas do relator, o governo ainda teria um problema, porque essas emendas se concentram em apenas dois ministérios, Saúde e Desenvolvimento Regional, enquanto os cortes para honrá-las precisariam acontecer no orçamento dos demais ministérios.
Na última semana, a “solução” para o problema do orçamento envolveu diversas propostas de, acredite, como quebrar o teto dos gastos. Uma proposta que vazou foi criar um espaço fora do teto de R$ 18 bilhões para atender às emendas parlamentares. Isso é quebrar o teto.
Outra opção ainda na mesa é retirar emendas do relator que foram direcionadas ao Ministério da Saúde (cerca de R$ 9 bilhões) e fazê-las entrar novamente no orçamento como despesa extra-teto ligadas à covid. Cada centavo que se retire do orçamento ajuda no pagamento das emendas do relator. Mas isso tem focinho, rabo e cheiro de truque contábil.
O que assusta é que, depois de três semanas, as soluções mais viáveis que estão sendo testadas em Brasília envolvem uma forma direta ou indireta de furar o teto para viabilizar acordos políticos/emendas parlamentares que não cabem no orçamento.
O que o Congresso talvez ainda não tenha notado é que hoje, mesmo cumprindo o teto sem furos, essa regra já não é mais suficiente para estabilizar a dívida pública nos próximos anos. O governo terá que completar o esforço fiscal com ganhos de arrecadação que sejam pelo menos o dobro da receita que perdeu em 2020.
É um problema de princípio: se começarmos a mexer na regra do teto de gastos assim que começa a ficar difícil cumpri-la, corremos o risco de voltar ao hábito brasileiro de “consertar” o excesso de despesa com mais carga tributária, e não cortando o gasto.
O que temos hoje? O Congresso não abre mão das emendas do relator, e o Executivo não tem como honrar essas emendas sem quebrar o teto. Sobra para o cidadão, que corre o risco de ver esse impasse se transformar em um dólar ainda mais caro, gasolina mais cara, inflação e juros gordos.
Em mais de uma forma, este episódio mostra que o Brasil está flertando com o passado.
As chamadas emendas do relator voltaram desde o ano passado a fazer parte do orçamento quase 30 anos depois da sua extinção, na esteira do escândalo que ficou conhecido como “os Anões do Orçamento.” Note que as emendas individuais e de bancadas estão garantidas: o problema não é com essas emendas, é com a emenda do relator.
Infelizmente, isso pode ser o início de um novo ciclo de inflação mais alta e/ou aumentos sucessivos de carga tributária para fazer o ajuste fiscal.
Ainda dá tempo de consertar. Ou não queremos consertar?