“If it’s not Boeing, I’m not going.” 

A frase, que se transformou num slogan para a maior fabricante de jatos comerciais dos EUA, resume a reputação de confiabilidade erigida pela companhia ao longo dos anos. Ela está estampada em camisetas e bottons vendidos na loja oficial da Boeing e é repetida rotineiramente por pilotos e admiradores da fabricante.

Uma legião de viajantes sempre se sentiu mais segura quando voava em um Boeing, até que dois acidentes terríveis envolvendo o 737 MAX, que havia acabado de entrar em operação, lançaram uma nuvem espessa sobre a credibilidade da companhia – que, ao perder terreno para a Airbus, teria deixado de lado as questões de segurança para acelerar o lançamento de seu novo modelo.

Essa é a história cativante – e um tanto assustadora – de Queda Livre: A tragédia do caso Boeing, da produtora e documentarista Rory Kennedy, em exibição na Netflix.

Manhã de 29 de outubro de 2018. O voo 302 com o novíssimo 737 MAX da Lion Air decolou de Jacarta com destino a Pangkal Pinang, uma rota doméstica de uma hora de duração, com 189 pessoas a bordo.

Treze minutos depois, a aeronave caiu no mar de Java. Não houve sobreviventes. O avião ficou completamente destruído. Foi o acidente com o maior número de vítimas desde o lançamento da série 737, criada originalmente em 1967 e extremamente popular em todo o mundo pelo seu histórico de segurança e facilidade de operação.

Manhã de 10 de março de 2019. O voo 302 da Ethiopian Airlines partiu de Adis Abeba com destino a Nairobi, no Quênia. Um minuto depois da decolagem, o copiloto relatou à torre problemas de controle do avião e pediu autorização para retornar ao aeroporto. O Boeing 737 MAX caiu em terra cinco minutos depois, atingindo o solo com uma velocidade superior a 800 quilômetros por hora, destruindo completamente a aeronave e matando as 157 pessoas a bordo, no maior desastre aéreo da Etiópia.

Em menos de cinco meses, 346 pessoas perderam a vida em acidentes similares, com relatos de pane nos instrumentos e perda de controle. Não fosse a omissão da Boeing e das autoridades, ao menos o segundo desastre poderia ter sido evitado.

A reação inicial da empresa, logo após a queda na Indonésia, foi enfatizar a confiabilidade da aeronave e insinuar que a culpa seria da Lion Air ou de um erro dos pilotos. Graças às caixas pretas, surgiram detalhes sobre a luta dos comandantes para manter o avião no ar, em meio a uma série de informações conflitantes nos instrumentos e avisos sobre o risco de o avião estolar, situação em que o jato perde sustentação.

As primeiras análises revelaram o provável mau funcionamento de um sistema que responde pela sigla MCAS, de maneuvering characteristics augmentation system. A reação dos pilotos que voavam nos MAX foi: “O quê? Nem sabíamos da existência desse dispositivo!”

Trata-se de um mecanismo que corrige o ângulo do nariz da aeronave para que ela não empine demasiadamente e perca sustentação. A Boeing, para “não sobrecarregar os pilotos com informações”, achou por bem não dar detalhes nem treinamento específico sobre o sistema, citado de passagem no manual da aeronave.

Houve pressões para que os MAX permanecessem em solo até que as causas do acidente fossem esclarecidas. O chairman e CEO da Boeing, Dennis Muilenburg, deu entrevistas insistindo na confiabilidade do avião. Nos bastidores, os lobistas da companhia trabalhavam para evitar qualquer decisão mais drástica por parte das autoridades e emplacar a versão de que havia ocorrido falha humana.

Meses depois, os pilotos da Ethiopian enfrentaram dificuldades semelhantes aos da Lion Air para manter a estabilidade do voo. Eles então já sabiam, ao menos, da existência do MCAS, e seguiram o protocolo indicado pela Boeing. Ainda assim, não foram capazes de controlar o avião.

Na sequência da queda na Etiópia, a reação imediata de vários países foi determinar que os MAX ficassem no solo até que os eventuais erros de projetos fossem solucionados. Os EUA foram um dos últimos países a fazer o mesmo, e ainda assim por iniciativa do Presidente Trump, porque seria importante “psicologicamente”. Logo depois, a Federal Aviation Administration, que até então não vira razões para suspender a aeronave, disse que “novas evidências” justificavam a medida de segurança.

O filme reconstitui os acidentes e deslinda tanto as falhas de projeto como os erros empresariais que levaram aos desastres. As informações se basearam nas investigações e nos documentos obtidos por um inquérito do Congresso americano. Há depoimentos esclarecedores de pilotos e especialistas em aviação, além de declarações de parentes de vítimas. Outra fonte importante foi o repórter investigativo Andy Pasztor, do The Wall Street Journal, um dos primeiros a escrever sobre as possíveis omissões da empresa e das agências reguladoras.

O documentário tenta responder por que uma companhia tradicionalmente tão zelosa com relação à segurança e ao treinamento de pilotos protagonizou tamanha negligência. A resposta estaria em decisões com um alvo duplo: enfrentar o avanço da Airbus e, ao mesmo tempo, ampliar as margens de lucro.

Em 2014, foi ao ar pela primeira vez o 320neo – de new engine option – o novo Airbus que concorre diretamente com os 737. O neo foi um sucesso instantâneo por causa da sua eficiência energética. Com ele, as empresas aéreas poderiam poupar dólares preciosos nos gastos com o querosene de aviação.

A Boeing não tinha um concorrente à altura. Investiu na solução improvisada de atualizar o desenho do 737 e instalar turbinas mais econômicas. Sem dar spoilers do filme, a decisão acelerou a produção de uma resposta à Airbus. Como se tratava de uma revisão de um modelo anterior, o MAX pôde ser homologado mais rapidamente – e sem a exigência de treinamento dos pilotos em simuladores de voo, o que reduziu custos e prazos.

O pecado do documentário é, por vezes, cair numa análise simplista de que a Boeing comprometeu a segurança em benefício dos acionistas, embora, pelo que se apurou, exista um fundo de verdade aí. Outro deslize é dar crédito em demasia a alegações de antigos funcionários, que, ficamos sabendo depois, estiveram envolvidos em disputas trabalhistas com a empresa. Já havia dados comprometedores em abundância nas apurações oficiais. Kennedy não precisava ter incluído ilações menos robustas no filme.

A Boeing acabou acusada de fraude e aceitou pagar US$ 2,5 bilhões para não ser processada criminalmente nos EUA. Dennis Muilenburg perdeu o emprego em outubro de 2019, levando para casa um pacote de US$ 62 milhões. Em novembro de 2020, os aviões foram autorizados a voar novamente, após uma série de correções no projeto e no treinamento dos pilotos.

O caso do 737 MAX será estudado por anos e anos nas faculdades de administração, nos MBAs e nas escolas de engenharia aeronáutica. É uma história repleta de equívocos que não deveriam jamais ser cometidos novamente.