Conhecido como “Rei” pelo povo de Fairfax, no estado do Oklahoma, William Hale apresenta-se como um amigo dos indígenas. Ele até fala a língua da tribo Osage, que vive na região desde os anos 1870, quando foi expulsa pelo governo americano de suas terras no Kansas. O povo Osage, diz Hale a seu sobrinho Ernest Burkhart, é “o mais educado, rico e belo que Deus colocou sobre a terra”.
A riqueza é a qualidade que Hale mais admira nos Osage. E eles são muito ricos: por acaso, a terra infértil onde foram despejados escondia grandes reservas de petróleo, descobertas no final do século 19.
O Rei fez fortuna criando gado, mas o subsolo de seu rancho não foi abençoado com tesouros minerais. Astucioso, Hale descobre meios de fazer a riqueza do nobre povo indígena “fluir na direção certa”, como ele mesmo diz. Em 1917, quando Ernest bate à sua porta em busca de ocupação, Hale logo o engaja em seus planos.
”Você gosta de mulher?”, pergunta o tio. “Esta é a minha fraqueza,” responde o sobrinho. A mulher indígena que ele será encarregado de seduzir é Mollie Kyle, cuja mãe idosa é detentora de direitos sobre a exploração de petróleo. Ernest começa a trabalhar como motorista de Mollie, e logo se insinua em sua casa.
Esta história real atraiu Martin Scorsese, que já visitou a fronteira entre o ‘sonho americano’ e o crime em filmes como Cassino e O Lobo de Wall Street. De início, o diretor veterano imaginou um filme que conjugasse o Western e o policial. Leonardo DiCaprio seria Tom White, o investigador do Bureau of Investigations (mais tarde rebatizado de Federal Bureau de Investigations, FBI) que desembarca em Fairfax em 1923 para esclarecer os mais de vinte homicídios de indígenas negligenciados, quando não encobertos, pelas autoridades locais.
Nessa configuração, porém, a história não incorporava a perspectiva dos Osage. Scorsese então descartou o primeiro roteiro elaborado em parceria com Eric Roth. A dupla reconfigurou a história como um drama íntimo, uma história de amor improvável pontuada por envenenamentos, tiroteios e uma explosão. Tom White aparece só no terço final das três horas e meia do filme, interpretado pelo ótimo Jesse Plemons.
No roteiro definitivo, Mollie – belamente encarnada por Lily Gladstone, atriz indígena da nação Blackfeet – divide o centro da trama com Ernest, papel assumido por DiCaprio. O “rei” Hale é Robert De Niro, ator que trabalha com Scorsese desde Caminhos Perigosos, de 1973. Assim nasceu o extraordinário Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), certamente um dos melhores filmes do mestre americano numa carreira que inclui obras-primas como Taxi Driver, A Época da Inocência e Touro Indomável.
Em cartaz nos cinemas, o filme será incorporado adiante ao acervo da Apple TV. A plataforma de streaming bancou a produção depois que a Paramount pulou fora do barco. O estúdio havia comprado a ideia quando DiCaprio era o herói detetive, não o submisso cúmplice de um parente ardiloso.
No entanto, esse personagem desprovido de glamour talvez seja a melhor atuação da carreira de DiCaprio. Falastrão e um tanto obtuso, Ernest não é de forma alguma um homem sutil, mas exige a mais fina sutileza do ator que o interpreta. É um personagem de uma dualidade difícil, que talvez afaste alguns espectadores. Os gângsteres de filmes anteriores de Scorsese, como Os Bons Companheiros, conquistam nossa compreensão (ou até nossa simpatia) mais facilmente.
Mollie, de outro lado, é uma mulher delicada e inteligente, embora pareça cega à falta de escrúpulos do marido. Sua fragilidade física – ela é diabética, o que a torna vulnerável ao envenenamento oculto em injeções de insulina – contrasta com uma serena força de caráter, que vai se revelar discretamente em um dos últimos diálogos do filme.
Baseado no livro de mesmo título de David Grann, jornalista da The New Yorker, Assassinos da Lua das Flores ilumina um episódio não tão conhecido da conflituosa relação entre brancos e povos nativos dos Estados Unidos. Aqui não vemos bravos guerreiros Sioux combatendo o general Custer: em Fairfax, a exploração dos indígenas era insidiosa, parasitária. A inesperada riqueza dos Osage atraiu uma legião de oportunistas à região. Alguns se empregavam como criados domésticos em casas indígenas, outros roubavam e matavam. E havia formas institucionais de expoliação: os royalties do petróleo pertenciam aos Osage, mas eram administrados pelo governo, que designava tutores para controlar o gasto de indígenas declarados “incompetentes” – caso de Mollie Kyle.
Aos 80 anos (81 em 17 de novembro), Scorsese se aventurou por uma senda obscura da história americana. Os indígenas que acolheram as filmagens no Oklahoma se reconheceram na tela. “É a nossa história,” disse Geoffrey Standing Bear, o chefe da nação Osage, ao The Wall Street Journal.