Em seu leito de hospital, o velho escritor ergue a caneta Bic com suas últimas forças. Sabe que lhe resta pouco tempo, talvez horas, e se aflige mortalmente. Então é isso? Tanto para dizer, tanta coisa prometida, tão pífia realização? Passa mais de meia hora de olhos pregados na parede, cismando bestamente na possibilidade de, como Brás Cubas, terminar sua obra… do outro lado.
Escreve:
“Brás abre o primeiro capítulo de suas memórias, chamado “Óbito do autor”, hesitando entre começar pelo princípio ou pelo fim, isto é, pelo nascimento ou pela morte. É claro que vemos aí a “pena da galhofa” que ele acabara de anunciar no prólogo – e se nada disso faz sentido para você, membro de uma geração que não lê Machado, azar o seu – mas nem por isso a questão do ponto de partida é menos crucial. É difícil levar qualquer empreitada a bom termo quando não se sabe o motivo de ter começado, claro. No entanto, não é esta uma boa definição da própria vida?”
Seria? O escritor olha para a janela, com sua persiana eternamente fechada. Tenta se lembrar do êxtase provocado por uma certa manhã de sua infância, cheia de sol, pescaria e alarido. Sobre ela só consegue extrair da memória descrições posteriores, adultas, palavras. Reflexos de reflexos.