Sozinha nas ruas portuguesas pela primeira vez, Bella Baxter, uma jovem inglesa, ouve ao longe uma melodiosa voz de mulher. Ela segue a música, até parar sob o balcão onde uma portuguesa canta. Por um momento, Bella se deixa levar pela melancolia do fado, os olhos curiosos fixos na cantora. Então um casal começa a discutir em um beco próximo, e Bella perde-se nas vielas de Lisboa para ver a briga de perto. 

Na beleza do Fado do quarto – interpretado pela fadista portuguesa Carminho – e na vulgaridade do bate-boca entre amantes, a protagonista de Pobres Criaturas (Poor Things), em cartaz nos cinemas, encontra encantos aos quais as pessoas a seu redor parecem insensíveis. E esse irresistível enlevo diante do cotidiano vem contagiando os espectadores do belo filme dirigido pelo grego Yorgos Lanthimos.

Bella é uma criança descobrindo o mundo, e isso não é uma figura de linguagem. Resultado de um experimento científico bizarro, ela tem o cérebro de um bebê, cirurgicamente implantado no corpo de uma mulher adulta. O corpo, no caso, pertence à atriz Emma Stone, cujos olhos de um verde profundo parecem desenhados especialmente para a personagem. 

O mundo que Emma descobre é a Europa do século XIX, recriada com uma direção de arte fantasiosa. Os céus de Lisboa, por exemplo, são cortados por trens suspensos e dirigíveis – como uma cidade futurista imaginada por Júlio Verne.

 A aventura começa em Londres, onde Bella é criada pelo doutor Godwin Baxter (Willem Dafoe), um homem deformado pelos experimentos a que foi submetido, na infância, pelo próprio pai. Invertendo o enredo do clássico Frankenstein, de Mary Shelley, aqui o cientista tem uma aparência monstruosa e sua criatura é belíssima.

Isolada em casa por Godwin (ou, como ele prefere ser chamado, God), Bella anseia por horizontes mais amplos. As cenas iniciais são em preto e branco, com enquadramentos inusitados e deformações da imagem produzidas pela lente olho de peixe. Esses recursos visuais compõem a atmosfera peculiar da casa de Godwin, por onde passeiam criaturas híbridas como um pato com cabeça de cão. 

Max McCandles (Ramy Youssef), o assistente de Godwin, apaixona-se por Bella e pede sua mão em casamento. Mas antes de qualquer compromisso, ela decide conhecer o mundo na companhia de Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um cafajeste que lhe ensina as alegrias do sexo. A cor então explode na tela, celebrando uma vida que não conhece constrições sociais.

Alma infantil experimentando prazeres adultos, Bella faz sexo como o mesmo apetite insaciável com que devora pastéis de nata em Lisboa. Forçada pelo cada vez mais ciumento Wedderburn a embarcar em um cruzeiro pelo Mediterrâneo, ela descobre o lado feio do mundo quando um companheiro de viagem lhe mostra a miséria das periferias. Em Paris, ela mesma se vê sem dinheiro e resolve o problema empregando-se em um bordel.   

Bella se mostra imune ao trauma, abraçando com a mesma curiosidade o melhor e o pior que o mundo coloca em seu caminho. Ela percebe a prostituição não como uma atividade degradante, mas como uma oportunidade de observar a natureza masculina em todas as suas variações e aberrações.  

Baseado em uma obra de Alasdair Gray, escritor e artista plástico escocês (no original, a história começava em Glasgow, não em Londres), Pobres Criaturas é o segundo filme que Emma Stone faz com Lanthimos. No primeiro, A Favorita, ela foi indicada ao Oscar de atriz coadjuvante (perdeu para Regina King, por Se a Rua Beale Falasse); agora, concorre a atriz principal. Mereceria o Oscar: Emma Stone deu vida a uma personagem ao mesmo tempo estranha e cativante.

Há, no entanto, um certo descompasso entre essa heroína generosa e o cinema de Lanthimos. Em filmes anteriores, seus protagonistas eram esquisitões sem virtudes notáveis, perdidos em um mundo regido por um acaso caprichoso e habitado por pessoas mesquinhas. É assim nos dois excelentes filmes estrelados por Colin Farrell, o cômico O Lagosta e o trágico O Sacrifício do Cervo Sagrado, e era assim também em A Favorita

Embora não seja o monstro que se esperaria de uma criatura feita de cadáveres, Bella sabe ser bem malvadinha às vezes. Mas é uma perversidade “justa”, que se volta só contra quem merece punição. Em um final que parece um enxerto mal costurado no corpo do filme, Bella enfrenta um antagonista ainda mais machista e dominador do que Wedderburn. Surge um enredo de vingança feminista que é, no fim das contas, um tanto moralista.

O espírito livre e ousado da protagonista, no entanto, consegue se erguer acima dos maus passos do roteiro.

Bela Baxter é um monstro, mas é uma maravilha.