Enquanto identidade narrativa, é na primeira pessoa do singular que nos destacamos. Esta tradição foi fixada em nossa cultura tanto pela poesia lírica, de alta carga existencial, quanto pelo cancioneiro popular, pelos diários íntimos e principalmente pela crônica, que é um exercício de strip-tease biográfico, gérmen da autoficção, modalidade romanesca que talvez melhor nos traduza. 

11383 6f58acfa c8ca eef0 a18a 588235ec842bNeste vasto espectro da literatura como confissão (nem sempre sem ficção), as memórias se destacam. País formado pela presença de imigrantes, os relatos memorialísticos são matéria-prima de nosso imaginário multifacetado, em que as experiências grupais se concentram em uma voz que é individual e, ao mesmo tempo, pelo recurso da metonímia, étnica. 

Mas as memórias guardam, em seu DNA, um perigo: a edificação do eu. Boa parte do que se publica neste campo tende a esta função publicitária, principalmente quando no campo dos homens e das mulheres que se destacam pelo empreendedorismo.

Editor de sucesso, lenda viva do mercado do livro, Luiz Schwarcz poderia fazer mais um livro sobre a trajetória do empresário vitorioso ou transportar suas experiências para uma ficção autobiográfica. Já seria um livro importante.

Mas a alma deste editor é a de um escritor, que já deixou um legado como contista. Suas memórias, portanto, pertencem ao universo da arte, tal como se vê no volume O ar que me falta: história de uma curta infância e de uma longa depressão (200 páginas, Companhia das Letras, R$ 59,90). Já pelo subtítulo, o autor rompe com qualquer proposta edificante. Quer falar de seus fantasmas e não de sua carreira. O livro traz tudo que valorizo na literatura. 

Primeiro, este enfrentamento das dores da infância, que nos deixam cicatrizes na alma e nos obrigam, pelo resto dos nossos dias, a lambê-las interiormente, como um cão a suas feridas.

O cão lambe as feridas sozinho, nem sempre nas posições mais agradáveis. E aí entra a segunda qualidade admirável deste livro: a coragem de mostrar-se em situações nada aprazíveis. A fragilidade do eu que fala de relações familiares, a beleza de seu casamento, os filhos e agora os netos, ao mesmo tempo em que trata de iniciação sexual, queda de libido, crises de bipolaridade e fraqueza psicológica, mostrando a complexidade da condição humana.

Poucos intelectuais têm ‘a coragem da verdade’, título do derradeiro livro-curso de Michel Foucault (Martins Fontes, 2011), a coragem de despir a biografia oficial em público.

A coragem da verdade é potencializada pela força da linguagem, o que torna este livro único entre os egodocumentos da cultura brasileira.

A estrutura que o autor escolhe, em espiral, é perfeita, pois representa, pela organização textual, as voltas que damos ao redor de nossos traumas. Se ele tivesse escolhido a estrutura linear, mesmo que fragmentada, mostraria uma organização mental que mataria a força desta voz que não consegue avançar porque, no seu passado, havia um pai corroído pelo remorso de ter sobrevivido, não apenas ao seu progenitor, mas aos demais judeus. 

Sobreviver significa não estar com os seus na hora derradeira. Como uma espécie de suicídio pretérito, o autor é convocado a este compromisso com os que morreram sob o nazismo.

Para entender isso, é preciso destacar a sobreposição dos nomes – Luiz é a tradução de Láios, nome do avô do autor. Schwarcz fala dos apelidos que teve, do tratamento carinhoso em família (Luizinho) ao nascimento do homem forte (que construirá uma das maiores editoras do Brasil), o Luizão. 

Neste livro, ele assume simbolicamente o nome ancestral, o de seu avô, Láios. Neste sentido psicanalítico, ao dedicar o volume ao avô ele o dedica a si mesmo; um é continuidade do outro. Luiz se une a este passado, àquele que foi morto pelos nazistas, e cria uma unidade, saltando a figura paterna (igualmente atormentada por esta tragédia), ao mesmo tempo em que a usa como ponte, para se fazer uno.

Nos momentos mais afetivos, Luiz assume o papel de avô (fala amorosamente das netas) e de neto (é obcecado pelo destino incógnito de Láios). Na lógica reversa, todo avô é um neto com mais idade. Há uma equivalência de identidades, um desejo de constituir um único ser. Em vez da sucessão cronológica, o palimpsesto existencial.

A prática religiosa revelada pelo autor, que se revela judeu praticante, faz parte também deste projeto de unificação. Ser digno de seus antepassados pelo respeito aos rituais é uma forma de diminuir a distância com os que foram mortos pelos holocaustos – no plural. Os rituais são trilhas que nos colocam num caminho longamente percorrido, confundimo-nos com todos os que nos antecederam. Mantemos assim vivo tudo o que passou pelos mesmos ritos.

Ao tirar de cena o editor poderoso, Luiz tornou pública a fragilidade do profundamente humano no artista que ele é. Mesmo no momento final, quando trata do lançamento de sua editora, é o homem frágil que está ali. 

Entre as belas imagens do livro, a do autor voltando do banheiro a toda hora, com a impressão de chegar outra vez à festa de lançamento da Companhia das Letras, é a mais simbólica. Não é isso a nossa vida profissional e familiar? A capacidade de estarmos sempre chegando e sempre nos surpreendendo? Está aí, cifrada, a receita de uma pulsão vital, seja nos relacionamentos pessoais seja no trabalho, que nos mantém ativos. Somos movidos pelos olhos de primeira vez.

A mulher com quem se vive há décadas é vista como novidade a cada vez que se volta a ela. As passagens de reconhecimento da força afetiva da Lilia Katri Moritz Schwarcz ajudam na desconstrução da couraça do empresário de sucesso, que é aposentada definitivamente pelas confissões de choro e de depressão. Por trás do que se conhece sobre nós, nossa face pública, há uma coleção de fragilidades que escolhemos filosoficamente não mais esconder.

Livro de memórias dos mais belos e corajosos, lemos O ar que me falta com taquicardia, em uma empatia literária cada vez mais rara nesses tempos de simulacros pós-modernos. 

O livro de Luiz Schwarcz ficará ao lado de O nariz do morto, de Antônio Carlos Vilaça, Espelho do Príncipe, de Alberto da Costa e Silva, Solo de clarineta, de Érico Veríssimo, Lágrimas na Chuva, de Sérgio Faraco, Minha vida de menina, de Helena Morley, Como eu se fiz por si mesmo, de Jamil Snege.

Livros que não querem proteger uma persona.
 
 
Miguel Sanches Neto é escritor e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná.