Um posto flutuante da Polícia Federal em Tabatinga, no Acre, de onde poucos e mal equipados agentes vigiam os barcos que percorrem o Rio Amônia carregando insumos para a produção de cocaína.
Uma pista de pouso em Indianápolis, no interior de Minas, em que um avião carregado de cocaína explodiu ao ser acertado por tiros da polícia.
Uma casa em São Paulo na qual um produtor independente cultiva maconha orgânica em todos os cômodos.
A balada que reuniu uma gangue de motoqueiros traficantes na Gold Coast, a cidade praiana na costa leste da Austrália.
São muitos os cenários de Nobres Traficantes (Zahar; 312 páginas, compre aqui), o livro-reportagem de Bruno Abbud – um jornalista com passagens por O Globo, Veja e Folha de S. Paulo – que apresenta um amplo e assombroso panorama da penetração capilar que o tráfico conquistou em metrópoles e grotões brasileiros.
O livro também dá contornos vívidos ao alcance global desse negócio. Por vezes, a narrativa se torna dispersiva, tal a quantidade de chefões do crime, atravessadores, pilotos de avião, laranjas, políticos e policiais que se acumulam uma página após a outra. A linha mestra do livro, porém, está bem definida em seu subtítulo: “Histórias da elite do crime”.
Os personagens principais das histórias reunidas por Abbud administram seus negócios longe da favela. Tal é o caso de Carlos Alberto Sgobbi, associado do Primeiro Comando da Capital (PCC) que é citado 33 vezes no livro, comparado a sete menções a Marcola, o nome mais conhecido da mesma facção.
Filho de um empresário do ramo dos transportes de Ribeiro Preto, Sgobbi enveredou para o tráfico de cocaína no fim dos anos 90, quando seu pai foi à falência, relata Abbud. Comprou aviões para trazer a droga para o Brasil e, em 2007, com a prisão de outro transportador, ganhou posição estratégica entre os fornecedores do PCC.
Em geral, a cocaína vinha da Bolívia e da Colômbia, países produtores, com escala no Paraguai. O capítulo mais agitado de Nobres Traficantes narra as interceptações de aviões feitas pela Polícia Federal em várias pistas rurais.
Em uma das interceptações mais espetaculares, o carro da PF arremeteu contra a asa de um avião em fuga para impedir sua decolagem (aqui, um vídeo feito pelos próprios policiais).
Ao lado de Sgobbi aparecem outros “empreendedores das drogas”, como os três irmãos Jaber, libaneses radicados no Brasil cuja quadrilha também estaria envolvida na venda de urânio para o Irã, segundo indicariam ligações telefônicas grampeadas pela PF.
Outra quadrilha reunia um fabricante de porcelanato e um ex-caminhoneiro que montara sua própria transportadora. O primeiro escondia o pó ilegal em meio a seus inocentes porcelanatos, e o segundo transportava a carga até Santos, de onde era exportada para a Europa.
Em paralelo a esses big players, Abbud traça o perfil do pequeno empreendedor das drogas ilícitas. Ao contrário do Sgobbi e dos irmãos Jaber, esses personagens não costumam figurar no noticiário policial. São identificados quase sempre por pseudônimo.
Em meio a esse grupo, o livro aponta um caso grave: uma banda da polícia de São Paulo encontrou um “bico” lucrativo (e ilegal) no achaque a jovens ricos que portam grandes quantidades de droga para vendê-la a amigos e colegas de faculdade. Abbud ouviu um rapaz que foi vítima do esquema e um informante da polícia que descobria os “alvos” ideais para a extorsão.
O herói ou anti-herói de Nobres Traficantes é Daniel (nome falso), filho do dono de uma concessionária de veículos que, em uma temporada na Austrália, descobriu a vida de luxo que a contravenção podia lhe oferecer. Sua história é contada em capítulos alternados ao longo do livro.
Daniel começou como “mula”, levando malas de cocaína do Brasil para um traficante brasileiro na Gold Coast. Nessa primeira experiência na contravenção, aprendeu a técnica para esconder o pó branco nos recessos de certo tipo de mala – e decidiu montar seu próprio negócio. Comprava quilos de cocaína em uma favela de São Paulo e contratava amigos para transportá-la.
Embora gastasse de forma desmesurada – alugava um apartamentão com vista para o mar e comprou uma Ferrari – Daniel chegou a acumular mais de um milhão de dólares australianos. Vendia o produto para as diferentes gangues de motoqueiros que o traficam na Austrália. Pensou em fechar a banca e levar os ganhos para casa várias vezes, mas deixou-se levar pela ganância.
A glória e a desgraça de Daniel funcionam como uma espécie de conto moral sobre o fascínio perverso do crime – a promessa de uma vida hedonista de festas e rolês em lojas caras equilibrando-se precariamente sobre o risco da batida policial e as ameaças da concorrência mais truculenta.
No início de Nobres Traficantes, o autor informa que o livro “é fruto de pesquisas, apurações jornalísticas e trabalhos de campo realizados por oito anos, entre 2014 e 2022”.
Naturalmente, a obra não pôde incluir as revelações das mega-operações que em agosto atingiram a estrutura financeira do PCC, revelando os avanços do grupo criminoso na Faria Lima, e muito menos a megaoperação no Rio de Janeiro na semana passada.
Bruno Abbud bem que já poderia começar seu próximo livro. Um Brasil assustado agradece.











