Filha de um vice-presidente de banco, Catarina não se achava rica. Em seu conturbado processo de divórcio, dizia, tudo o que buscava era uma pensão que lhe permitisse criar seus três filhos com conforto.
A pedido do advogado, Catarina, que nunca trabalhara na vida, debruçou-se pela primeira vez sobre seu orçamento doméstico. Só o básico para uma vida simples: alimentação, internet, condomínio, escola dos filhos, mensalidade do clube, personal trainer, troca anual dos carros, salários e encargos trabalhistas de quatro empregadas, dois motoristas e um cozinheiro.
Concluiu que, para manter seu padrão de vida, precisaria de pouco mais de dois milhões de reais por ano.
O ex-marido chiou. Filho de uma família tradicional do interior de São Paulo e dono de restaurantes chiques na capital, ele disse a um amigo que não pretendia “pagar os luxos” de Catarina.
“Ela tá achando o quê? Que eu sou rico?”
Registrado em um áudio de celular, o desabafo acabou se incorporando a um processo de divórcio em que se discutiu até o preço dos implantes de silicone de Catarina.
Esse litígio é narrado nos capítulos finais de Coisa de Rico (Todavia; 240 páginas), que vem ocupando o topo das listas de mais vendidos na categoria de não ficção. (Compre aqui)
Michel Alcoforado, o autor, deve estar ciente da titilação que os barracos na alta sociedade costumam provocar. Maldosamente divertido, seu livro não foge desse apelo.
Coisa de Rico, porém, não funciona como livro de fofocas, até porque quase todos seus personagens estão protegidos sob pseudônimos. Alcoforado é um antropólogo que se dedicou a estudar a exótica cultura das tribos que vivem em bairros afluentes como os Jardins, em São Paulo, e a Barra da Tijuca, no Rio.
Seu objetivo maior é entender os códigos que os ricos usam para afirmar sua riqueza – mesmo quando negam que são ricos, como faz Catarina.
“A vida simples, boa, com conforto é a maneira como os ricos brasileiros se autoidentificam, se posicionam dentro da estrutura social. É como eles reivindicam os vínculos de pertencimento com os estratos superiores,” escreve o antropólogo.
Alcoforado cita, a propósito, uma pesquisa Oxfam/Datafolha de 2022 na qual os entrevistados indicavam a categoria social que ocupavam: 70% se diziam pobres ou de classe média baixa, 29% afirmavam ser de classe média ou média alta – e ninguém se dizia rico: 0%.
Ainda assim, os milionários e bilionários fazem uma força danada para se apartar do comum das gentes. As “coisas de rico” aludidas no título – que podem incluir do sapato Gucci à Ferrari – serviriam sobretudo para traçar essa fronteira social.
Aliás, mais do que marcar a diferença em relação aos pobres, esses bens materiais e imateriais também posicionam o rico entre os outros ricos: “As coisas de rico (…) criam pontes e catapultam os indivíduos para as rodas onde conquistarão o reconhecimento.”
O primeiro contato de Alcoforado com os afortunados, tal como ele o narra no início do livro, se deu por acaso: no aeroporto de Miami, em 2010, o antropólogo conheceu um casal de brasileiros que levantou suspeitas dos funcionários da imigração, pois estava viajando sem malas. Mário Jorge e Claudette, típicos novos ricos, pretendiam comprar tudo na viagem.
Os dois se conheceram quando trabalhavam em uma padaria. Ele começou a ganhar dinheiro pouco mais tarde, como representante comercial de empresas farmacêuticas. Decidiu abrir uma empresa que formava representantes e promovia eventos corporativos para as farmacêuticas. Enriqueceu.
O casal introduziu Alcoforado aos costumes das classes ascendentes. Claudette lhe ensinou, por exemplo, que grifes são importantes para ter “borogodó”. No momento em que compartilhou essa lição de sapiência, ela vestia um casaquinho Tom Ford, sapatos Louboutin e óculos Prada. Quase tudo legítimo, garantiu: “Pode até ter uma coisinha falsa, mas tudo falso não dá”.
Para entrar no mundo dos ricos tradicionais, a guia de Alcoforado foi Olívia, dona de um fundo de investimentos que juntava as heranças do pai banqueiro, do avô industrial e do bisavô latifundiário.
Quando recebeu o antropólogo em um restaurante em Genebra, onde vive, Olívia vestia uma camisa de seda branca sem marca aparente – uma discrição que fazia um contraste violento com o estilo gritante de Claudette.
A camisa vinha do ateliê de Anne Fontaine, uma brasileira radicada em Paris que já vestiu Oprah Winfrey e Michelle Obama. Feita sob medida, não custaria menos do que seis mil euros. É o que se chama de quiet luxury.
Mas a distinção maior entre o noveau riche e o old money não está no estilo: esses dois grupos vivem em tempos diferentes, diz Alcoforado. Os emergentes, em um ponto de virada para uma vida nova, voltam-se para o futuro. Os herdeiros buscam a distinção em tradições familiares quase sempre mais recentes do que eles propagam.
Mesmo com ajuda de ricos simpáticos à sua pesquisa, Alcoforado levou tempo para conseguir circular entre o 1% mais abastado do Brasil. Só chegou lá quando se tornou um personagem de si mesmo: “o antropólogo do luxo”.
Há uma certa ambiguidade nessa condição. Alcoforado com frequência ironiza os empresários, investidores, diplomatas, profissionais liberais e herdeiros com quem compartilhou espaços e experiências (ele até perdeu alguns quilos em uma clínica de emagrecimento chique do Rio).
Sua crítica, porém, convive com certo deleite pelo universo tão exclusivo cujos segredos ele busca desvendar. Fica a suspeita de que o deleite talvez seja mútuo: os ricaços talvez se envaideçam de receber em seus salões um acadêmico tão interessado em sua dolce vita.
Ser personagem de Coisa de Rico, ainda que com nome falso, pode contar como uma legítima coisa de rico.