Seria a alta gastronomia francesa descendente direta da cozinha italiana? Diga isso a um francês e ele reagirá com desdém. Seja como for, os italianos dão como certo que foram eles que ensinaram os franceses a cozinhar.
Pelo menos é isso que o editor e escritor Bill Buford ouviu mais de uma vez na temporada em que viveu na Toscana.
Em busca dessa resposta – e de realizar seu desejo de trabalhar numa cozinha francesa ao lado de grandes chefs – Buford abandonou o prestigiado cargo de editor de ficção da New Yorker e se mudou (com a mulher e dois filhos pequenos) para Lyon, a proclamada “capital mundial da gastronomia.”
Ele conta essa aventura em Cinco Anos em Lyon (Companhia de Mesa, 544 páginas), uma imersão literária na alta gastronomia francesa.
Buford havia feito algo semelhante 15 anos antes, quando publicou “Calor”, seu mergulho na gastronomia italiana. Primeiro, estagiou por algum tempo no Babbo, em Nova York, o então festejado restaurante do chef celebridade Mario Batali (hoje no ostracismo e respondendo a acusações de assédio sexual).
Depois, o jornalista seguiu as indicações de Batali e partiu para a Toscana. Teve a glória de ser aprendiz de Dario Cechetti, o açougueiro que declama Dante enquanto prepara as melhores bistecas à fiorentina da Itália.
Conhecido pela obstinação e detalhismo com os quais enfrenta as metas que se impõe, Buford fez um mergulho ainda mais profundo na gastronomia francesa. Inicialmente, estagiou no Citronelle, em Washington, de Michel Richard, um inventivo seguidor da nouvelle cuisine.
Na sequência, por sugestão de Richard e outros chefs badalados dos EUA, seguiu para Lyon, cidade no centro da região em que se desenvolveu a grande tradição culinária francesa, berço da revolução da nouvelle cuisine, terra sagrada do papa Paul Bocuse e por onde passaram inúmeros chefs multiestrelados.
As motivações de Buford não são as de um foodie ou de um gourmand. Seu impulso é viver a experiência por dentro, interagindo com seus personagens e, na verdade, tornando-se ele mesmo personagem da sua história. Imaginou inicialmente que ficaria um ano na França, como na Itália. Ficou quase cinco.
Estabelecido em Lyon, começou a colocar a mão na massa, literalmente, em uma boulangerie. Não aceito inicialmente para trabalhar em restaurantes, decidiu que saber como fazer a melhor baguette da cidade seria um primeiro grande passo para desvendar a culinária local. Descobriu que não havia nenhum segredo especial no preparo. O pão era delicioso por causa da qualidade da farinha, originária, no caso, de um pequeno moinho da região.
Com um empurrãozinho de amigos renomados, como o chef Daniel Boulud, Buford conseguiu aos poucos furar as resistências dos fechados lionenses. Estudou no seleto Institut Paul Bocuse. Em uma das aulas iniciais, aprendeu a “ouvir” o ponto correto da manteiga derretendo na frigideira para o preparo de um filé (muito quente, a manteiga queima, e, se muito fria, a carne adere na panela). “A manteiga precisa cantar”, ensinou o mestre, pois assim pode-se fazer o rissoler, a técnica de dourar a carne banhando-a com a gordura líquida.
Buford conquistou então o seu objetivo, que era trabalhar em um grande restaurante local. Ganhou uma oportunidade como auxiliar de cozinha no La Mère Brazier. A fundadora, Eugénie Brazier, foi por muito tempo a grande “mãe” – bastante autoritária – dos chefs locais, como Bocuse. Em 1933, ela foi a primeira pessoa a ser agraciada com três estrelas Michelin por dois restaurantes ao mesmo tempo.
Na cozinha, Buford não encontrou moleza. As jornadas de trabalho faziam com que ele saísse de casa antes das 7h e chegasse depois das 21h. A tolerância com seus deslizes era maior do que a oferecida a outros iniciantes, mas nem por isso a sua vida era fácil. Foi alvo recorrente do bullying e das chacotas dos colegas. “Vinte e cinco golpes com a faca, foi o que você precisou para descascar a batata”, disse um dos cozinheiros, depois de observar o americano em ação. “Sabe quantos são necessários? Sete.” E demonstrou como retirar a pele rapidamente e com perfeição.
Os lioneses, diz Buford, não são famosos pela receptividade com pessoas de fora, e ele era um forasteiro no meio de um clube exclusivo. Lyon não é uma metrópole cosmopolita como Paris, e a sua periferia, industrial, não oferece nenhuma beleza particular. “Não é a Provença. Não é a Côte d’Azur.”
Mas os ingredientes produzidos na região, aliados à sua cultura gastronômica, fazem toda a diferença. Certo dia, Buford teve a chance de encontrar Bocuse, já com a idade bastante avançada.
Perguntou-lhe como era Eugénie Brazier. “A sua cozinha era simples”, disse Bocuse. “Era baseada nos bons produtos que encontramos em nossa região. Temos sorte. Os peixes, as aves, os porcos. Seus pratos não eram, falando francamente, sofisticados. Era uma cozinha do campo. A sua comida era boa, mas era toda baseada nos ingredientes.”
Ingredientes? É isso o que os italianos sempre enfatizam, escreve Buford. Seria mais um sinal de que a grande culinária francesa tinha em seu DNA traços de genomas originários do outro lado dos Alpes?
Apesar de os chefs lionenses torcerem o nariz para a ideia de serem descendentes de cozinheiros italianos, há raízes históricas para tanto. No passado, Lyon foi uma importante cidade do Império Romano.
Estão lá, no alto de uma colina, as ruínas de um teatro daquele tempo. O que importa para a história culinária francesa foi a segunda invasão italiana, a que ocorreu no Renascimento. As feiras da cidade atraíram comerciantes e banqueiros italianos, entre eles herdeiros dos Medici, que se estabeleceram ali. A arquitetura do bairro antigo de Lyon, Vieux Lyon, lembra Florença. Em 1533, quando Catarina de Medici casou-se com o futuro rei Henrique II da França, Lyon já estava tomada por italianos, o que enfraquece as especulações de que ela teria sido a responsável pela suposta influência italiana nos fogões franceses.
“Cinco Anos em Lyon” não é um relato de bastidores e segredos sórdidos das cozinhas, como “Cozinha Confidencial”, de Anthony Bourdain. Não é também simplesmente um livro de receitas, ainda que muitas dicas e pequenos segredos sejam compartilhados com os leitores – como fazer um verdadeiro molho béarnaise, por que quebrar os ovos em superfícies planas, a maneira correta de retirar a pele de ervilhas para que elas não percam o sabor. São detalhes que, ao lado da qualidade dos ingredientes, fazem uma culinária simples alcançar a alta gastronomia, como ensinou Bocuse.
“O papa de Lyon morreu, mas que cultura ele nos deixou,” diz Buford no fim do livro. “Foi um enorme privilégio ter feito parte disso.”