Na semana passada, a Polícia Civil do Paraná prendeu oito funcionários das três maiores distribuidoras de combustível do País sob a acusação de formarem uma organização criminosa.

A Operação Margem Controlada rendeu manchetes nacionais e fez o brasileiro acreditar que mais um setor da economia está envolvido na podridão que tanto aflige o País.

Mas uma leitura do calhamaço do processo sugere que, onde as autoridades enxergam atividade criminosa, há apenas o funcionamento normal do mercado de combustíveis — um negócio de margem de lucro líquido média de 3%, no qual as empresas dependem de precificação dinâmica, investimento em marca e um relacionamento mutuamente benéfico com os donos dos postos.

A Promotoria e a Polícia confundem conceitos e demonstram uma falta de entendimento básico sobre como funciona o mercado. O resultado, infelizmente, já está se tornando lugar-comum: a criminalização da atividade empresarial num País onde a suspeição generalizada e o voluntarismo de alguns procuradores tem tornado as coisas ainda mais difíceis para quem cumpre a lei.  

A investigação começou depois que três donos de postos de gasolina procuraram a Promotoria de Defesa do Consumidor de Curitiba alegando “conduta de domínio de mercado” pelas principais distribuidoras, as quais “manipulam os preços de venda ao consumidor, por intermédio de contratos de exclusividade de compra ou ‘contratos de bandeiramento’.”  

É aí que a Promotoria descobre — e acha terrível — a relação contratual das distribuidoras com os donos de posto.  Segundo a acusação, estes contratos “fazem com que o proprietário do posto compre exclusivamente o combustível da distribuidora, a qual ostenta a marca, sob pena de pesadas multas. Os chamados ‘Postos Bandeirados’ se obrigam contratualmente com a distribuidora, a qual de forma indireta, acaba vinculando o preço de compra (custo) de acordo com o preço de venda (bomba) retirando do posto revendedor sua capacidade de determinar suas próprias margens.”  

 
Para os promotores, este arranjo, que existe há décadas e já passou pelo crivo do CADE diversas vezes, estaria prejudicando o consumidor.

Aqui, é importante entender, em linhas gerais, como funciona uma distribuidora: tipicamente, um setor de ‘pricing’ — que conhece o custo da companhia e é alimentado com pesquisas de mercado e informações sobre o volume vendido pelos postos — fala ao longo do dia com funcionários espalhados pelos País, que por sua vez visitam os donos de postos. 

A relação é simbiótica.  A distribuidora diz ao dono do posto quanto vai lhe cobrar e lhe mostra um ‘preço sugerido’ para revenda.  Num dia de movimento ruim — ou muitos boletos a pagar — o dono do posto baixa o preço e abre mão de sua margem. Em outro dia, com o posto vendendo bem, o dono sobe o preço. A distribuidora reage a estes cenários aumentando ou reduzindo sua margem, trabalhando para preservar a competitividade de sua marca.

Até onde é possível enxergar, tudo isso se chama mercado, e a tentativa de criminalizá-lo diz muito sobre o espírito antiempresarial que existe no Brasil — e que foi alimentado quando as empreiteiras e outras companhias foram pegas (estas sim, com a boca na botija) pela Lava Jato.

A Promotoria alega que as distribuidoras engessam os donos de postos para que eles não possam baixar seus preços, mas todos os diálogos capturados nas escutas mostram justamente o contrário:  as distribuidoras trabalhando para ter mais competitividade na revenda, o que acaba puxando os preços para baixo.

Não há, nos áudios, nenhuma distribuidora combinando nada com outra.  Todas as comunicações são verticais, ou seja, entre os funcionários de cada uma das empresas e seus postos revendedores.

Talvez seja por isso que a acusação, apesar de mencionar a palavra ‘cartel’ — uma associação horizontal entre concorrentes para fixar preço, margens, ou dividir o mercado — curiosamente não acusa as empresas de cometer este crime.

A Promotoria foca na ‘imposição de preço de revenda’.  Esta prática, quando existe, pode ter um efeito neutro, positivo ou negativo sobre a concorrência.

Editoras de jornais, fabricantes de cigarro, o McDonald’s e as lojas da Apple — por exemplo — praticam o mesmo preço sem que ninguém lhes questione. A razão é óbvia: as empresas querem concorrer com outras marcas, e não fazer com que suas lojas/franquias concorram entre si. Assim, o efeito desta fixação de preços é neutro ou positivo para a concorrência.

A acusação não prova que há fixação de preço, mas acha tudo muito suspeito.

No caso da BR Distribuidora, a promotoria diz que “os assessores comerciais de referida empresa chegavam a pedir fotos da placa com o preço de gasolina afixado para verificar se os proprietários estavam cumprindo com as determinações da empresa.”  (É comum uma distribuidora fotografar as placas com preço para alimentar sua área de precificação com dados.)

No caso da Raízen, os promotores se chocam com a tentativa da empresa de obter a melhor precificação: “se verifica a existência de precificação do combustível por região, levando-se em consideração o movimento do local bem como o poder econômico dos consumidores.” (Sem comentários.)

“Essa acusação lembra uma inquisição medieval condenando a usura, como se negociar a divisão de margem de lucro com seu próprio revendedor fosse crime,” diz Juliano Maranhão, professor de Direito da USP e especialista em direito concorrencial. “É impressionante a confusão de conceitos concorrenciais. Temerário.”  

Para ele, não é só a confusão entre sugestão e fixação de preço de revenda. “Também confundem fixação de preço de revenda com fixação de preço entre concorrentes, o que seria formação de cartel e embasa a acusação de formação de quadrilha, usada para justificar a prisão temporária.”

Segundo Maranhão, “o CADE jamais condenou a sugestão e jamais determinou a cessação cautelar de fixação de preços de revenda.”

Finalmente, há a questão do aparente excesso no uso da força.

Depois que a Lava Jato deu ao País esperança de passar a limpo suas instituições, uma ‘síndrome de Lava Jato’ acometeu polícias e procuradores em todo País. 

Todo mundo quer seus 15 minutos de fama, todo mundo quer ser Lava Jato — mas infelizmente, nem todo mundo tem a mesma substância, e, felizmente, nem toda empresa é a Odebrecht. (Já vimos esse filme na Operação Carne Fraca, que fez problemas localizados parecer uma ameaça sanitária sistêmica.)

Não é à toa que o ‘kit escândalo’ — peça central da atividade policial nos últimos anos — estava presente em Curitiba: uma delação premiada, uma prisão espetacular dos acusados, e o vazamento de áudios para a imprensa.

No final, foram para a cadeia os seguintes ‘delinquentes’: funcionários de baixo escalão da área comercial, graduados em áreas como engenharia e administração — a maioria no início de uma carreira que, acreditavam, os manteria longe das lavajatos e da polícia batendo na porta.