Em um campo aberto em algum ponto ao sul de Santarém, no Pará, sete bois formam uma linha reta, um atrás do outro. Os animais só se dispuseram dessa forma singular para fugir ao sol impiedoso da zona equatorial. Uma árvore morta era o único objeto vertical da área, e os bois apertavam-se para se abrigar sob a nesga de sombra projetada pelo tronco seco.
João Moreira Salles deparou-se com essa cena triste quando viajava pelo trecho paraense da BR-163, rodovia que atravessa o país de norte a sul. Em seu livro Arrabalde (Companhia das Letras; 424 páginas), o gado em fila indiana serve como um emblema da colonização predatória da Amazônia.
Em uma região rasgada por disputas fundiárias, a ocupação da terra – quase sempre ilegal – vale por uma declaração de propriedade. Os sete bois não estão lá engordando para o abate: servem para sinalizar que o campo já tem dono.
Arrabalde é uma crônica abrangente e muito bem documentada dos impasses ambientais, econômicos e sociais da Amazônia brasileira. Nasceu de uma temporada de seis meses que o autor passou no Pará, entre 2019 e 2020. Viajando pelo segundo maior estado brasileiro, o documentarista de Notícias de uma Guerra Particular e Nelson Freire escreveu uma série de reportagens para a piauí – a revista que fundou –, agora reunidas e expandidas no livro.
Rico em referências históricas – da primeira expedição européia a descer toda a extensão do rio Amazonas, no século 16, ao malogrado esforço de Henry Ford para criar no Pará um pólo produtor de borracha para os pneus de seus carros nos anos 1920 – o livro concentra-se no período que vai da ditadura militar ao governo Bolsonaro.
Na maior parte desse período de quase sessenta anos, a política oficial para a Amazônia elegeu a floresta como inimiga, demonstra Moreira Salles. Era preciso cortar a região com estradas e derrubar a mata, abrindo espaço para atividades produtivas que nada tinham a ver com o cenário amazônico.
“A Transamazônica está aí: a pista para a mina de ouro”, dizia um cartaz de 1970 chamando empresas a investirem na Amazônia, apresentada então como uma “terra sem gente”. Ribeirinhos, indígenas e outras populações locais eram desconsiderados. A floresta era desprezada.
Por um período que vai, grosso modo, do segundo governo Fernando Henrique até parte do segundo governo Lula, houve um esforço para preservar o bioma e reprimir os agentes de sua destruição. Essas políticas começaram a ser revertidas no governo de Dilma Rousseff. E a partir de 2019, com Jair Bolsonaro no poder, o desmatamento “explodiu”, diz Moreira Salles.
O livro se ampara em numerosos estudos econômicos para explicar os mecanismos que impulsionam a devastação da floresta. A ausência de fiscalização ambiental e o barateamento da terra causado pela abertura de estradas propicia um ciclo que os especialistas chamam de boom-colapso.
Quando uma nova área florestal se abre à exploração, os madeireiros derrubam tudo o que podem. Há uma fase passageira de prosperidade local, acompanhada de criminalidade alta.
O investimento na destruição é de curto prazo: estima-se que o declínio comece no oitavo ano. Em vinte anos, o boom já terá se esgotado, e aos moradores da área devastada resta o recurso a uma “pecuária vagabunda”, na expressão de Moreira Salles: “bois de costelas salientes desesperados por uma sombra”.
Um ponto enfatizado pelo autor é que o Brasil troca a riqueza biológica representada pela maior floresta tropical do mundo por quase nada. A pecuária sobre terras que já foram mata cerrada é o melhor exemplo dessa produtividade deficiente.
“O valor bruto por hectare da produção agropecuária no Paraná é nove vezes superior ao que se registra no Pará. Em 2018, o estado sulino produziu R$ 77 bilhões em 12,7 milhões de hectares, enquanto no Norte foi preciso quase o dobro da área — 21 milhões de hectares — para gerar um quinto do valor, R$ 14,4 bilhões.”
Arrabalde também traz casos de sucesso, como a adesão da cidade paraense de Paragominas às políticas de preservação do governo federal na primeira década deste século, ou a encantadora história do agricultor nissei cuja fazenda é orientada pela diversidade de espécies, não pela monocultura.
Moreira Salles é um otimista cauteloso, que acredita na conservação da floresta ainda de pé, em particular neste momento em que a preocupação com as mudanças climáticas toma o centro da agenda global.
Mas nenhuma melhora será duradoura, sugere ele, enquanto não houver uma mudança cultural – enquanto o Brasil não conceber sua gigantesca floresta como o centro, e não o arrabalde, de sua identidade nacional.
Para além das considerações econômicas e sociais, João Moreira Salles convida o leitor a abraçar um princípio que é ao mesmo tempo ético e estético: é preciso salvar a floresta porque ela é fundamental para a vida no planeta – e porque ela é bela.