Certa vez, num encontro informal, o gravurista e pintor Carlos Scliar (1920-2001) desenhou o retrato de uma senhora após insistentes pedidos dela. Dono de técnica apurada, o artista foi rápido no gatilho: apresentou o trabalho e a conta, que madame achou um tanto salgada.
“Mas o senhor não levou nem meia hora,” lamentou a cliente. “Engana-se! Levei meio século de carreira, mais esses 15 minutos,” retrucou Scliar, irredutível.
Planeta Fome, o novo disco de Elza Soares, segue essa linha.
O nome do álbum, que carrega na capa o traço da cartunista Laerte, remete a um episódio marcante de 1953. Em plena era de ouro do rádio, o prestígio do programa Calouros em desfile oferecia ao artista iniciante um atalho para o estrelato. Os candidatos, porém, tinham que enfrentar ao vivo o mais temido dos apresentadores: Ary Barroso, radialista experiente, compositor da Aquarela do Brasil e notório rabugento.
Uma espécie de precursor do bullying, ele recebia seus convidados inseguros munido de piadas de gosto duvidoso e um pioneiro gongo, martelado à primeira desafinada.
Elza Gomes da Conceição recorreu ao melhor de seu figurino humilde para tentar a sorte no auditório da Rádio Tupi. Encarou “seu Ary” depois de, nos bastidores, ouvir o gongo soar muitas vezes. “De que planeta você veio, minha filha?”, perguntou o compositor, para delírio da plateia. “Do mesmo que o senhor”, respondeu a menina, na lata. “E que planeta é esse?”, retrucou Ary, mau humor e desdém nas alturas. “Planeta fome”, devolveu a garota, antes de soltar a voz pelos dramáticos versos de Lama, de Paulo Marques e Aylce Chaves. Ganhou a nota máxima, um abraço de Ary Barroso e o veredicto: “nasce uma estrela.”
Sessenta e seis anos depois, Elza Soares continua brilhando alto e forte nas doze faixas de seu 34º disco, o segundo pela gravadora Deck. Destemida, lançou o trabalho na última sexta-feira 13, nem aí para o mau agouro.
A produção musical é de Rafael Ramos, hoje um nome de peso no mercado, revelado quando, ainda garoto, insistiu com o pai, João Augusto (fundador da Deck e, à época, diretor da EMI), para contratar uns tais Mamonas Assassinas, cuja demo havia ouvido no toca-fitas do carro da família. O resto é história.
Em Planeta fome, Elza se cerca, mais uma vez, de sons e músicos da novíssima geração, receita que levou a excelente resultado em Deus é mulher, de 2018, e A mulher do fim do mundo, um acontecimento do showbizz em 2016 – ganhou o Grammy Latino e entrou na lista dos dez álbuns mais relevantes do ano, publicada pelo New York Times, entre Beyoncé (Lemonade), David Bowie (Blackstar) e Leonard Cohen (You want it darker). Infatigável, a intérprete renova seu repertório para cantar o amor pelo Brasil e a indignação com o muito que considera errado no país.
“Eu não vou sucumbir”, avisa, já no primeiro verso da primeira canção, Libertação, gravada com talentos da Bahia: Orkestra Rumpilezz, Virgínia Rodrigues e a pulsante BaianaSystem, de Russo Passapusso, autor da música. Caso não esteja no modo aleatório (coisas da era digital), o ouvinte vai chegar em seguida à curta e surpreendente Menino. Uma raridade, e inédita como a anterior, a música foi composta pela própria Elza ainda nos tempos de dureza no subúrbio carioca de Água Santa – onde morava quando enfrentou Ary Barroso. Em menos de um minuto, o tema comove a partir da primeira parte, à capela, com seu recado singelo: “Venha cá menino/não faça isso não/sei que é muito triste/não ter casa, não ter pão/não te leva a nada/destruir o seu irmão/você representa o futuro da nação”.
O papo reto, costurado nos arranjos pelo peso da percussão, continua em Brasis (Gabriel Moura, Jovi Joviniano e Seu Jorge), desfiar de contradições tão nossas — “Tem um Brasil que é próspero/ outro não muda/ o Brasil que investe / outro que suga” — e no rap Blá Blá Blá, com participação de BNegão.
Elza termina o álbum com um hino contra a homofobia em Não Recomendado, de Caio Prado, depois de lavar a alma na estonteante Não tá mais de graça, gravada com o autor, o rapper Rafael Mike. A música é uma atualização de A Carne, de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, sucesso na voz da cantora desde 2002. O recado forte da letra anterior – “a carne mais barata do mercado é a carne negra” – é substituído agora por um aviso aos navegantes: “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça.”
É difícil imaginar como tudo o que Elza Soares já passou na vida possa caber na existência de uma criatura só.
Aos 12 anos, já era mãe. Aos 18, viúva. Sentiu na pele a fome e a dor que denuncia nos seus discos mais recentes. Viveu, a partir do bicampeonato de 1962, no Chile, e por 20 anos, um tórrido e conturbado caso de amor com Garrincha. Em pleno século XXI, a menina surgida na era do rádio ainda é considerada, no Brasil e lá fora, o que há de novo em termos de música.
Elza quase não tem mistérios.
Esconde a idade, o que não é um problema – só complica a vida da imprensa. Dependendo do jornal, matérias sobre o novo álbum atribuem à diva 79 ou 89 anos. No Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira, o verbete crava 23/6/1930 como a data de nascimento. Outra fonte séria, a Enciclopédia da Música Brasileira registra 23/6/1937. Quem se importa?
Na biografia escrita pelo jornalista Zeca Camargo a partir de conversas entre os dois, Elza esclareceu a questão: “Não tenho idade, Zeca, tenho tempo.”
Ouça o álbum abaixo: