A Squadra Investimentos alertou para as armadilhas que estão à espreita do investidor pouco diligente, incluindo fundos imobiliários com dividendos turbinados e balanços corporativos ‘embelezados’, particularmente no setor de varejo.
Numa carta de 22 páginas enviada a seus investidores, a gestora de Guilherme Aché – que administra R$ 16 bilhões de clientes – também discorreu sobre a estratégia de crescimento a qualquer custo do varejo nos anos de juro baixo, e disse que uma parte significativa do setor tentou esconder os baixos retornos operando a contabilidade e métricas gerenciais.
Sobre os fundos imobiliários, a Squadra disse que a armadilha está nos dividendos, que costumam atrair o investidor médio.
Como ativos financeiros com essas características comumente são negociados com base em seu dividend yield, ao longo da história “diversas entidades se valeram dessa constatação e optaram por pagar dividendos acima da geração de caixa de seus negócios subjacentes, de forma a inflar o preço de ativos listados.”
Para equilibrar essa disparidade, a saída costuma ser emissões primárias de ações frequentes – ou o aumento de endividamento.
“Recentemente, foi trazido à luz o exemplo extremo da holding do investidor americano Carl Icahn, definida no relatório da Hindenburg Research como um ‘Ponzi-like economic structure’,” disse a carta.
“Por aqui, diversos fundos imobiliários possuem a prática de pagar dividendos superiores à geração de caixa recorrente de seus ativos, enquanto se amparam em repetidas emissões primárias. Como esse padrão de comportamento não se sustenta no longo prazo, há chance não desprezível de surpresas negativas para cotistas de alguns desses fundos, que, nos últimos anos, cresceram de forma importante no portfólio de pessoas físicas brasileiras. Seria uma versão amortecida do que aconteceu com a Icahn Enterprises.”
Sobre a armadilha nos balanços, a gestora carioca parte da constatação de que “muitas empresas buscam embelezar seus balanços para o especial dia de fechamento de trimestre.” Assim, a fotografia dos ativos e passivos nos resultados de algumas varejistas no encerramento de trimestre “diferem bastante do que seria a realidade de sucessivos balanços diários.”
“Já escrevemos em carta anterior como despesas relacionadas ao crescimento da empresa transitando na demonstração de resultados podem minorar o lucro contábil em relação ao earnings power.”
Agora, diz a Squadra, tem sido cada vez mais comum encontrar a ponta oposta: “Administradores e contadores têm optado por capitalizar no formato de intangíveis despesas com pouca perspectiva de serem proponentes de receita à frente. Jogam, assim, para o futuro os impactos negativos desses desembolsos de caixa em seus lucros.”
A Squadra também aborda a fraude na Americanas e seu impacto no mercado – e o que está chamando de undeserved sales.
Acionista do Mercado Livre, a gestora diz que o acompanhamento da evolução do mercado de varejo brasileiro tem sido um de seus maiores focos de análise.
A partir da constatação de que o ecommerce da Americanas encolheu 80%, a Squadra se pergunta onde foi parar todo esse volume de vendas perdido. E responde: “por incrível que possa parecer”, boa parte do volume aparenta ter “simplesmente desaparecido”, em vez de ter migrado para os concorrentes.
Em parte, diz a carta, a piora marginal nos componentes macroeconômicos de crédito e consumo podem explicar parte desse desaparecimento – mas, para a Squadra, esta não é a razão principal.
“Nossa leitura é que, no cenário atual, os demais players do segmento não quiseram esse faturamento que era ‘artificial, ‘comprado’. Além das situações delicadas de endividamento, quase todos já têm a sua cota de receitas em certo grau infladas pela aquisição a qualquer custo de market share online.”
A Squadra chama essa parcela de vendas que nunca dará suficiente retorno sobre o capital investido de undeserved sales, ou seja, uma receita que a companhia “não merece possuir”.
Na análise da Squadra, investidores e empresários embarcaram no “sonho” do marketplace, impulsionado também pela pandemia e os juros muito baixos, levando as ações do varejo a performances fantásticas.
“A vantagem competitiva baseada em efeitos de rede é muito evidente e difícil de ser deslocada. Além disso, era reputado como um modelo leve em capital, principalmente pela lógica de não possuir estoque próprio e pelas receitas majoritariamente provenientes de corretagem cobrada ao intermediar cada transação entre comprador e vendedor (take rate).”
Ao redor de todo o mundo, diz a Squadra, as empresas foram encorajadas a crescer fortemente, deixando a busca da lucratividade para um futuro longínquo.
“A expressão ‘custo de aquisição de clientes’ (CAC) se tornou um grande passe livre no mundo corporativo para decisões sem sentido econômico, como vendas com margem de contribuição negativa. Em um evento de empresas tech não-listadas organizado por um banco de investimento brasileiro, escutamos da diretora de uma dessas companhias: ‘Não temos preocupação em quando daremos lucro. Estamos no business de perder dinheiro.’ E deu uma risada que foi acompanhada pela maioria da plateia,” diz a carta.
Ao longo desse período de capital abundante, as receitas de grande parte dessas empresas realmente cresceram muito, e o capital, que não estava preocupado com o retorno do negócio investido – apenas com a apreciação do ativo que estava comprando – acabou mal alocado. A consequente queima de caixa das empresas era solucionada com ofertas de ações ou de dívida – até que a liquidez secou e “os corpos apareceram pelados”.
“Companhias repletas de undeserved sales sentiram o golpe. A evolução recente dos fatos tem deixado claro que esse vício em participação de mercado, conquistado muitas vezes com prejuízo, não fideliza o cliente,” diz a carta.
Segundo a Squadra, enquanto os powerpoints sugeriam que a construção das “plataformas” online seria pouco intensiva em capital, a realidade se revelou diametralmente oposta para muitas companhias. Com o acirramento da competição, as demandas por nível de serviço do consumidor “se tornaram tremendas, passando a exigir gastos infindáveis em custos de aquisição de clientes, logística, tecnologia, ofertas de novos serviços e prazos de recebíveis.”
Como este se tornou um problema considerável a ser encarado, o varejo buscou parte da solução na contabilidade e nas métricas gerenciais.
“As despesas com tecnologia estão muito altas? São investimentos no negócio, portanto o auditor autoriza capitalizar grande parte desses gastos no formato de intangível.”
“As margens ficaram pressionadas pela piora do cenário ou por sucessivas entradas e saídas em determinadas categorias de produto? Perdas de estoque são provisões one-off. Também há a alternativa de recorrer a bonificações adicionais com fornecedores. (…) O ciclo de caixa piorou? Usar o limite de crédito com bancos para fazer operações de risco sacado melhora as métricas de capital de giro da companhia. A despesa financeira continua a existir, mas o auditor não considera como dívida.”
“A companhia necessita continuar crescendo suas vendas online, mas o consumidor está muito sensível às condições de pagamento? Não há problema em oferecer grandes prazos de parcelamento. Recebíveis de cartão são monetizáveis via operações de antecipação e podem ser considerados como caixa nas métricas gerenciais e nos covenants das dívidas.”
Para a Squadra, essas e outras práticas e argumentações se disseminaram entre as companhias como forma de camuflar as pressões crescentes em seus resultados.
Não é difícil encontrar, diz a Squadra, empresas de varejo com centenas de lojas e enormes centros de distribuição que, ao reportarem seus índices de alavancagem, excluem suas despesas de aluguéis do EBITDA (em acordo com o IFRS 16, o padrão contábil atual), mas não “devolvem” para a dívida líquida o valor presente desses aluguéis capitalizados.
Por fim, como o balanço nas demonstrações financeiras é uma foto do último dia do trimestre, algumas companhias têm recorrido a gestões de curto prazo no intuito de apresentar caixas mais robustos e menores alavancagens em relação à sua realidade patrimonial cotidiana. Nas vésperas da divulgação de resultados, optam por negociar prazos e postergar pagamentos, além de ampliar operações de risco sacado e de antecipações de recebíveis.
Esse quadro, diz a carta, gera fatos inusitados: empresas que se apresentam com “caixa líquido ajustado” em seus releases gerenciais e em métricas de covenant, porém com resultado financeiro contábil negativo na casa dos bilhões de reais.
A Squadra diz que nem todo o volume de vendas eletrônicas da Americanas evaporou; parte dele foi capturado pelo Mercado Livre, que a gestora define como um contraexemplo positivo nesse cenário, “não apenas para o segmento de ecommerce, como para as demais companhias que acabaram contaminadas pela euforia do ambiente macro dos últimos anos”.
O MELI, diz a Squadra, “não entrou em devaneios para inflar sua receita a qualquer custo, como através de compras agressivas de tráfego via afiliados.”
O MercadoLivre é uma das posições mais relevantes da Squadra, ao lado de Equatorial Energia, PRIO, XP, Rumo, Grupo Mateus e Ultrapar.