A criação na surdina de um ‘IBGE paralelo’ trouxe à tona o clima de crescente insatisfação dos servidores com as ações do presidente do instituto de estatísticas, Marcio Pochmann.

Servidores em cargos de chefia e ex-diretores do instituto estão indignados com o “autoritarismo e falta de transparência” da atuação de Pochmann e o seu projeto “megalomaníaco” de criar um sistema integrado que controle as informações no País.

Marcio Pochmann ok

A ambição de Pochmann é criar um grande sistema que centralize a produção e divulgação de informações no País, disse um ex-servidor que já ocupou cargo de direção no instituto – notando que o presidente do IBGE frequentemente manifesta sua admiração pela agência de estatísticas da China. 

Em evento recente, Pochmann condenou a propagação do “obscurantismo” pelas Big Techs e defendeu a criação de um sistema “soberano” de dados.

A crise interna foi exposta inicialmente pela divulgação de um manifesto anônimo na sexta-feira passada. No mesmo dia, a própria associação sindical dos servidores do IBGE, a Assibge, convocou para hoje um ato contra o “comportamento autoritário que tem marcado as ações recentes” de Pochmann.

O ‘IBGE paralelo’ denunciando pelos servidores é a Fundação IBGE+, criada sem que houvesse discussão sobre sua estrutura ou objetivos.

É uma fundação pública de direito privado, ou seja, uma entidade sem fins lucrativos que dá maior autonomia administrativa a órgãos públicos.

A fundação foi estabelecida no dia 12 de julho, mas sua existência só foi noticiada (na intranet do IBGE) em 9 de setembro – e, segundo o sindicato, de “maneira panfletária e superficial.”

Os servidores foram pegos de surpresa e tiveram que ir a um cartório para encontrar informações sobre o estatuto.

Pochmann, um crítico incansável das privatizações, vê-se agora sob a acusação de privatizar o IBGE.

“Fiquei surpreso porque tem até servidor de esquerda pedindo a cabeça dele,” afirmou um pesquisador.

De acordo com um comunicado da presidência do instituto, a criação da Fundação IBGE+ deve-se à “urgência assumida diante da restritiva situação orçamentária.”

Ainda segundo a nota, a iniciativa contou com a “sustentação” do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e a aprovação do Ministério do Planejamento e Orçamento.

A associação dos servidores disse que a existência da fundação nunca foi mencionada por Pochmann nas reuniões com os representantes dos funcionários. A Assibge criticou as “incorreções e omissões” das notas divulgadas pela presidência do órgão. 

Em atitude leviana e desrespeitosa ao sindicato e ao conjunto de servidores do IBGE, o comunicado tentou ainda plantar na imprensa a versão de que a indignação da categoria em relação à criação por baixo dos panos de uma fundação de direito privado seria apenas um reflexo da polêmica em torno do teletrabalho,” disse a Assibge. 

As contratações para essa nova fundação já começaram, segundo pessoas a par do assunto. Haverá uma estrutura própria e a possibilidade de contratação de funcionários CLT.

“Além de absurda, porque ninguém sabe como as informações públicas e confidenciais serão usadas, a fundação será um grande cabide de empregos, como já está acontecendo,” disse um ex-diretor do IBGE.

Não existe uma clareza sobre os objetivos e o arco de atuação do instituto paralelo. Pochmann tem comentado o assunto apenas por notas e sem entrar em detalhes. 

Em uma destas notas, a presidência disse que a fundação permitirá ao instituto “o recebimento de recursos para atender a pesquisas ou projetos desenvolvidos com ministérios, bancos públicos e autarquias, antes impossível devido a dependência de ‘orçamento’, e poderá ser operacionalizada por meio dessa fundação de apoio.”

A nota diz ainda que “os recursos absorvidos com a Fundação IBGE+ serão retidos e obrigatoriamente revertidos para o instituto.”

“Se essa fundação não for uma picaretagem de saída, é o portão para uma picaretagem,” um ex-presidente do instituto disse ao Brazil Journal. “O IBGE é um bem público, que produz bens públicos. Como fica a questão do sigilo de informações? É um problema ético e moral.”

Para ele, a falta de uma definição dos limites e dos objetivos de atuação abre brechas para “um vale-tudo perigoso.” 

Servidores ponderam que não é verdade que o gasto com a folha de servidores seja uma restrição para os projetos do IBGE, como tem dito Pochmann. Pesquisas como o Censo Agrícola, por exemplo, possuem um orçamento próprio e independente, que deve ser apresentado pelo Governo e aprovado pelo Congresso.

Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Pochmann é um quadro histórico do PT e já foi presidente da Fundação Perseu Abramo e do Instituto Lula.

Apesar de ser hierarquicamente subordinado ao Planejamento, comandado por Simone Tebet, foi indicado diretamente por Lula.

A nomeação causou críticas de economistas como Edmar Bacha, um ex-presidente do instituto, por causa da conturbada e problemática passagem de Pochmann na presidência do Ipea entre 2007 e 2012, no primeiro Governo Lula.

Naquela época, Pochmann promoveu uma perseguição aos ‘neoliberais’ do órgão, colocou pesquisadores na geladeira e promoveu concursos cujas provas tinham viés ideológico.

No IBGE, o mesmo padrão já começou a ocorrer. “E não é porque a pessoa é bolsonarista não, basta discordar das opiniões deles – algo que nunca havia acontecido,” disse um servidor com muitos anos de casa.

Tebet não comentou publicamente a crise no IBGE nem se deu apoio de fato à criação da fundação.

Ao Brazil Journal, a assessoria da ministra disse que “a proposta de criação da IBGE+ foi apresentada ao Ministério do Planejamento e Orçamento, uma vez que o Instituto é um órgão que integra o referido ministério.” 

Segundo a assessoria, o IBGE “possui autonomia administrativa para a criação da referida fundação.”

A queixa de servidores atuais e antigos até o momento tem se concentrado na criação da Fundação IBGE+ e em questões trabalhistas, como a exigência de retorno ao trabalho presencial e a transferência de parte das atividades do instituto para o Jardim Botânico, na Zona Sul do Rio – uma área nobre mas de difícil acesso por transporte público. Boa parte dos trabalhadores do IBGE mora na Zona Norte e na Baixada Fluminense.

O projeto de Pochmann também inclui criar o que ele chama de Sistema Nacional de Geociência, Estatísticas e Dados (Singed), cujo coordenador seria o IBGE.

“Nos delírios dele, o IBGE deve ser uma espécie de autoridade máxima de controle da internet e dos dados no Brasil,” disse uma servidora de carreira a par da iniciativa. “Por isso que ele fala tanto da China. É uma visão extremamente autoritária e velha, mesmo para quem tem um viés de esquerda.”

No final de julho, o IBGE promoveu a Conferência Nacional de Agentes Produtores e Usuários de Dados, em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

O tema das discussões foi a “soberania” das estatísticas brasileiras, e “os riscos e oportunidades da era digital.”

Em seu discurso na abertura da conferência, Pochmann disse que “no mundo que transita para a Era Digital amedronta o despertar dos riscos de uma difusão da ignorância assentada no poder da desinformação, canalizado pelo processo avançado da monopolização do conhecimento dirigido por poucas e gigantescas corporações transnacionais de tecnologia da informação.”

Ainda segundo Pochmann, “ao capturar, armazenar, sistematizar, definir e dirigir o acesso ao conhecimento por meio da revolução informacional, as denominadas Big Techs configuram um mundo novo operado nas veredas do iletramento com a disseminação de uma espécie enraizada de um novo obscurantismo que cresce à sombra do desmoronamento desregulatório da esfera pública.”

Esse “novo obscurantismo,” de acordo com o presidente do IBGE, lembra o poder da Igreja Católica na Idade Média, que monopolizou o conhecimento e moldou a ignorância obscurantista, própria da sociedade agrária atrelada ao modo de produção feudal.”

Nas palavras de Pochmann, “a vacina contra o avanço das mentiras e desinformação” é a retomada da “soberania das nações sobre dados” – daí a necessidade da criação de um Singed coordenado pelo IBGE. “Estamos fazendo história,” disse ele.

Mas a criação do Singed, ao contrário da criação sorrateira da fundação, precisa passar pelo Congresso e dependerá de uma nova dotação orçamentária.

De acordo com técnicos e ex-dirigentes do IBGE, falta ao Brasil um plano geral de estatísticas, bem como a harmonização de informações entre os diversos órgãos – mas um eventual sistema integrado teria que ser feito de maneira transparente e negociada.

“O que temos no IBGE é uma direção perdida, autoritária, ideológica no mau sentido,” comentou um pesquisador recém-aposentado. “Em 40 anos, nunca vi algo do tipo, com cartas de protesto de coordenadores de pesquisas e manifestação de servidores que historicamente apoiam o PT.”

Felizmente, até o momento, servidores de carreira e antigos diretores do instituto asseguram que as informações publicadas regularmente, como as pesquisas de inflação e do PIB, continuam confiáveis e realizadas seguindo os critérios técnicos.