O discurso contra tudo e contra todos ajudou a catapultar Javier Milei ao primeiro posto na disputa eleitoral da Argentina.

Muitos de seus potenciais eleitores, entretanto, têm sido atraídos por sua proposta de dar fim ao peso e fazer do dólar a moeda corrente do país.

Um dos principais mentores dessa ideia é Emilio Ocampo, um dos consultores de Milei e um veterano de Wall Street, com passagens pelo JP Morgan e pelo Salomon Brothers. Ocampo passou duas décadas trabalhando entre Nova York e Londres antes de retornar à sua Buenos Aires natal.

Nesta conversa com o Brazil Journal, ele explica por que acredita não haver outra maneira de estabilizar a economia argentina que não seja uma dolarização plena – e rebate os argumentos contrários à proposta.

dolarização“Muita gente diz: Um país como a Argentina não deveria tentar uma medida dramática como a dolarização,” disse Ocampo. “Não faz sentido. O que é dramático é que não temos uma moeda. O que é dramático é que, nos últimos quatro anos, o peso perdeu 90% de seu valor. É ilógico darmos ao Estado o monopólio sobre a emissão de dinheiro se o Estado é governado por políticos que nunca podem operar dentro do orçamento.”

Hoje com 60 anos, Ocampo dirige o Centro de Estudos de História Econômica na Universidad del CEMA (Center for Macroeconomics Studies of Argentina). Faz parte também do Conselho Acadêmico da Fundación Libertad y Progreso, também em Buenos Aires.

A saída pelo dólar não apareceu ontem em sua vida.  Em janeiro de 2022, junto com o economista Nicolás Cachanosky, Ocampo publicou o livro Dolarización: una solución para la Argentina.

A seguir, os principais trechos da entrevista, feita por telefone na tarde da segunda-feira.

Por que, na sua opinião, um país com uma economia do tamanho e da relevância internacional da Argentina precisa adotar uma medida tão radical como é a dolarização?

Não há país no mundo com algo remotamente parecido com o que vemos aqui. Nenhum tem o mesmo tipo de inflação. Se olharmos no passado recente, no pós-Guerra, há apenas um país cuja taxa média de inflação é remotamente comparável com a argentina. Esse país é o Brasil. Mas o Brasil, você sabe, conseguiu alcançar a estabilidade de preços.

A Argentina é um pássaro estranho – e não no bom sentido. A Argentina tem o que os economistas chamam de doença de inconsistência temporal. Basicamente, as autoridades e formuladores de políticas públicas sempre priorizam o curto prazo.

Tivemos estabilidade de preços nos anos 90 com a lei de conversibilidade. Ela servia como um mecanismo para colocar alguma disciplina, mas isso acabou em 2001. Durante os 22 anos nos quais tivemos algo semelhante a um câmbio flexível, nosso desempenho foi muito ruim, devido ao abuso da impressão de dinheiro como fonte de receita fiscal.

É uma situação parecida com a do Brasil antes do Plano Real. Por que você acredita que não seja possível, para a Argentina, ter um plano similar ao Real?

Já houve tentativas no passado de planos semelhantes. Mas sempre digo que a Argentina não pode continuar fazendo a dança caribenha, que é dar um passo para frente e dois para trás.

Temos uma situação muito grave. Os índices de pobreza são elevados, a economia permanece estagnada desde 2012. A Argentina não cresce. Se você olhar para o PIB per capita, são os níveis de 2011. Os mais jovens procuram oportunidades no exterior.

Ou nós consertamos isso e fazemos certo, de maneira duradoura, ou novamente teremos a dança caribenha, com alguns anos bons seguidos por três anos negativos.

Precisamos de uma mudança de regime duradoura. Tem que haver alguma disciplina. Vamos priorizar o curto ou o longo prazo? Precisamos resolver esse problema de inconsistência temporal.

Precisamos de uma solução de longo prazo em um ambiente muito desafiador.

As autoridades hoje têm credibilidade zero. Essa é a primeira coisa. A segunda é que prejudicamos tanto nossas instituições que temos algo chamado anomia institucional. Quando você tem anomia institucional, o Executivo comete infrações legais e então fica muito difícil para o cidadão confiar que os direitos serão protegidos.

Em terceiro lugar, temos uma dependência cultural do populismo. Não há país no mundo, desde 1945, que tenha se submetido voluntariamente à investida do populismo. O peronismo é o movimento político de maior sucesso no mundo desde 1945.

No Brasil ninguém fala de Getúlio Vargas como um guia para a política atual. Na Argentina, ainda falam de Perón como nos anos 40.

O resultado é uma inflação fora de controle. Nenhum país da América Latina, exceto a Venezuela, está vivendo algo remotamente parecido com isso.

Como seria feita a dolarização?

É preciso entender a distinção entre dolarização espontânea e oficial, de jure, que é quando o governo decide adotar o dólar como moeda legal.

Nas transações no dia a dia, a dolarização espontânea é relativamente baixa na Argentina, com exceção de algumas transações imobiliárias. Por exemplo, se você vai comprar um apartamento pequeno, talvez de US$ 50.000, poderá levar uma mala cheia de notas. Mas para a maioria das transações, o dólar não é usado.

Então você tem a dolarização financeira. Muitas das economias são investidas em dólares e mantidas em dólares.

Os argentinos têm a maior quantidade de notas de dólar do mundo. Um total de mais de US$ 200 bilhões. Dolarização real significa que os agentes econômicos usam o dólar como referência para a provável evolução dos preços localmente, então eles fixam seus preços usando o dólar. Na Argentina, temos uma dolarização real muito alta.

Se você tem uma inflação muito alta, a variável mais importante que afeta os preços no curto prazo é, na verdade, a taxa de câmbio nominal. Se você quiser estabilizar os preços, você deve olhar para três ferramentas: a base monetária, a taxa de juros nominal e a taxa de câmbio.

Olhando a história das hiperinflações europeias, o caminho para se estabilizar no curto prazo requer que você estabilize a taxa de câmbio. Quem assumir o Governo terá que resolver isso de forma crível e duradoura.

Existem algumas maneiras de tentar corrigir a taxa de câmbio. O presidente do Banco Central pode anunciar amanhã que temos uma taxa de câmbio fixa e que não vai mudar essa taxa de câmbio. Bem, isso na Argentina não funcionaria. Ninguém acreditaria.

Podemos dizer que vamos aprovar uma lei no Congresso. Parece uma boa ideia, mas já tentamos isso nos anos 90 — todas as formas normais de fixar a taxa de câmbio — e só nos resta uma. É a dolarização.

Isso não significa que a Argentina resolverá todos os seus problemas. Não acho que isso vá curar a Argentina, acho que essa é a condição necessária para curar a Argentina. Precisamos de estabilidade de preços porque há muitas coisas a serem concluídas para que a Argentina saia desse equilíbrio ruim.

De quais reformas você está falando? Quais seriam as prioridades?

Precisamos desregular a economia. Precisamos reduzir gastos. Gastamos muito, e não é porque o Governo presta excelentes serviços. Há muita corrupção e ineficiência.

Precisamos introduzir flexibilidade nos mercados de trabalho. Precisamos assinar tratados de livre comércio. Precisamos promover o desenvolvimento dos mercados financeiros e manter a disciplina fiscal. Precisamos ter regras de jogo claras e favoráveis ​​ao investimento privado.

E precisamos de estabilidade política. Nossa história mostra que a única coisa que os políticos podem ter para obter apoio é a eliminação da inflação.

Mais de 80% das pessoas têm um salário mensal fixo, que é corroído por uma inflação de quase 10% ao mês. Então, se alguém eliminar a inflação, independentemente se for de esquerda ou direita, terá apoio político. A redução da inflação é essencial para o bom funcionamento da economia, mas também traz benefícios políticos.

Muita gente diz: “Um país como a Argentina não deveria tentar uma medida dramática como a dolarização.” Não faz sentido. O que é dramático é que não temos uma moeda. O que é dramático é que, nos últimos quatro anos, o peso perdeu 90% de seu valor.

É ilógico darmos ao Estado o monopólio sobre a emissão de dinheiro se o Estado é governado por políticos que nunca podem operar dentro do Orçamento.

Todos os depósitos bancários no sistema bancário são talvez US$ 50 bilhões. Compare esse US$ 50 bilhões com as divisas estrangeiras em circulação. Se você observa a quantidade de dólares que há na economia, algo entre US$ 150 bilhões e US$ 200 bilhões, significa que o Banco Central não controla de fato a liquidez na Argentina.

A base monetária, somando os pesos em circulação e ss reservas bancárias em pesos, é algo como US$ 9,5 bilhões. Isso é o que o BC tenta controlar, menos de 10% da liquidez. É impossível estabilizar uma economia nessa situação.

Usando o dólar como moeda, a Argentina perderia flexibilidade para reagir a choques externos e equilibrar as contas externas. Isso não o preocupa?

Rudi Dornbusch, que foi um dos economistas mais brilhantes dos últimos 50 anos, era a favor da dolarização. O prêmio de desvalorização cambial aumenta a taxa de juros local. A taxa de juros nominal será alta. Ele disse que não adianta ter o custo desse prêmio de desvalorização se você não usar sua política cambial para amenizar os choques externos.

O problema com esse argumento é que a política cambial na Argentina quase nunca foi usada para esse fim. Você sabe por quê? Porque a alta do dólar tem impacto nos preços.

O governo acaba de desvalorizar o peso, no câmbio oficial, em 22%. Veremos a rapidez com que esses 22% vão se refletir nos preços domésticos.

Portanto, se você não pode usar a política cambial com o objetivo de atenuar o efeito dos choques externos, então ela é inútil. Não me diga que vai usar essa política para amenizar um choque externo porque nunca fez isso nos últimos 10 anos.

Uma das críticas à dolarização é que o país ficaria sem um ‘credor de última instância’ nos momentos de crise financeira. Qual sua avaliação quanto a isso?

Não temos um credor de última instância. Você não pode perder o que não tem. Temos um Banco Central que tem US$ 24 bilhões em reservas, sendo US$ 22 bilhões em swaps devidos à China. Mas os passivos são de US$ 30 bilhões.

Que tipo de credor de última instância você pode ser? O Banco Central está insolvente e é o maior devedor do sistema bancário. É o tomador de empréstimos de primeira instância.

Podemos criar um fundo que atue como credor de última instância. Não há razão para que os mercados de capitais não possam fazer esse trabalho. O que precisamos é de supervisão bancária e regulamentação do sistema bancário muito rígidas.

Não estamos defendendo um sistema bancário descontrolado.

Qual será o papel do Banco Central da Argentina no futuro? Você é a favor da extinção do Banco Central?

Com a dolarização, o Banco Central perderá sua função de imprimir dinheiro, mas poderá regular o sistema. Eu não eliminaria o Banco Central. Eu faria uma reestruturação. Precisamos de um supervisor bancário forte, profissional e independente. Precisamos de bancos privados capitalizados.

Queremos isolar as reservas bancárias do sistema político, porque vimos o que aconteceu no Equador com Rafael Correa. As reservas bancárias foram usadas para financiar o déficit público. O Equador monetizou parcialmente seu déficit.

Queremos isolar e proteger as reservas bancárias, mantê-las fora do alcance dos políticos argentinos.

O senhor acredita que o governo Lula fará pressão política contra a dolarização na Argentina?

Você já ouviu seu presidente argumentar que o mundo precisa se afastar do dólar. Ele pode falar o que quiser.

Felizmente para vocês no Brasil, até agora ao menos, vocês têm um Banco Central independente. E o seu BC não tem interesse em apoiar esse tipo de experimento.

É do interesse do Brasil que a Argentina tenha estabilidade de preços e seja um país estável. Não há razão para imaginar que a dolarização prejudique o Brasil.

Não podemos aumentar a produtividade sem aumentar o investimento e não podemos aumentar o investimento sem estabilidade de preços e moeda sólida. Acho que o Brasil não deveria ser contra a dolarização da Argentina. Não há razão para isso.

Os argentinos já escolheram o dólar. Só precisamos reconhecer oficialmente.

Poderá ocorrer um ‘overshooting’ na cotação do dólar e isso vai penalizar a população mais pobre, que não tem reservas na moeda americana. Como enfrentar isso?

Essa é uma questão relevante. Mas o overshooting já ocorreu. Massa desvalorizou o peso para 350 por dólar, mas no câmbio paralelo a cotação do dólar está quase em 800 pesos.

O que a taxa de câmbio do mercado negro está dizendo é que o mercado acredita que há inflação reprimida. Cedo ou tarde, a inflação vai subir.

Há um elemento de inflação reprimida. Temos controle de preços e todo tipo de intervenção do governo. Infelizmente, o que você me pergunta sobre o overshooting já está refletido no mercado, porque a atual política cambial é totalmente incoerente.