Ao longo de seus 37 anos, o Roda Viva, da TV Cultura, cumpre o papel essencial de pautar os debates no Brasil. Tenho o hábito de assistir às entrevistas antigas do programa, porque não é raro que determinados conceitos estejam tão à frente do seu tempo que pessoas normais, como eu, levem um tempo para compreender o que foi debatido.
Na semana passada, fiquei surpreso ao ver o anúncio de que o acadêmico Jorge Caldeira estaria no programa falando sobre seu livro Brasil: paraíso restaurável, publicado há três anos. Como Caldeira já participou cinco vezes do programa – o que deve ser um recorde, diga-se de passagem – não entendi a razão para a ‘reprise’ de uma de suas entrevistas. Qual não foi minha surpresa ao constatar que não se tratava de uma reprise, mas de um programa específico para falar de um livro que, devido à sua inegável importância, provavelmente já está esgotado nas livrarias.
O livro alerta que o Brasil é uma potência energética, pois tem rios com quedas, matas, a tecnologia de biomassa, o sol, o vento e o subsolo. Tem tudo – e em abundância.
A capa do livro, reveladora e chocante, expõe o mapa do mundo sob a ótica do potencial de se gerar vida, tanto animal como vegetal. Sob esse critério, o Brasil é a maior potência do planeta, rivalizada apenas pelo conjunto de todos os países africanos.
Caso você não leia o livro, observe com atenção sua capa – no mínimo, ficará óbvia a nossa capacidade de ter a maior e melhor matriz energética do mundo, desde que seja possível pensar estrategicamente sobre o futuro e legislar, hoje, em prol deste.
Na entrevista, Caldeira deixa claro que o Brasil pode assumir um protagonismo inédito nos anos que virão se encarar a questão climática, um desafio para o mundo, como a oportunidade de se tornar um líder imprescindível na cena global. O próprio Caldeira, no meio da entrevista, arriscou a explicar o motivo do Roda Viva levar tempo para abordar o assunto: “O Brasil não estava preparado para debater o livro em 2020.”
No dia seguinte, por coincidência, eu tinha uma conversa marcada com uma das co-autoras do livro – a jovem Julia Sekula, com quem me conectei desde o lançamento da obra, em 2020. Hoje, Julia cursa o segundo ano do MBA em Stanford e tem um foco grande na Amazônia, bem como em questões climáticas. Fiquei surpreso ao saber que, em sua turma de MBA, 65% dos estudantes, de diversas nacionalidades, estão focados em desenvolver suas carreiras em climatech. Este talvez seja o maior indicador de que o Brasil, realmente, tem a maior oportunidade de toda a sua história.
Ao mesmo tempo em que um dos programas mais prestigiosos do País abre espaço para falar do “Brasil: paraíso restaurável” como se fosse uma novidade, várias imagens registraram o novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, abraçado à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, um das maiores referências da agenda ambiental. E qual mensagem subliminar tentaram passar? Talvez de que o Brasil pretende estabelecer um novo paradigma. As imagens dos dois ministros lado a lado é um simbolismo histórico. Afinal, não é mais possível discutir questões econômicas sem ponderar os seus efeitos sobre a vida na Terra.
Outra cena marcante do atual governo veio do Presidente Lula, que subiu a rampa do Planalto no dia da posse de mãos dadas com o Cacique Raoni – decano dos povos originários do país – sob os acordes de Villa-Lobos, o primeiro músico brasileiro a explorar os sons da floresta, das aves e da natureza como matéria-prima das músicas, e que serviu de inspiração para Tom Jobim, que fez da bossa nova um ritmo universal.
Porém, um novo paradigma somente será estabelecido se o Estado brasileiro, depois de 500 anos, efetivamente seguir reconhecendo no dia a dia, e não só em datas festivas, que a competência para cuidar da nossa biodiversidade está no conhecimento ancestral e indispensável dos povos da floresta.
O documentarista João Moreira Salles acaba de lançar o livro Arrabalde, no qual descreve a experiência de viver no Pará, durante seis meses, registrando a vida na Amazônia. O livro trata preponderantemente da forma como a Amazônia foi ocupada e de como, em consequência, tornou-se uma região pobre e violenta.
Mas Moreira Salles também apresenta a verdadeira face da região, na qual abundam a beleza, diversidade e o deslumbramento. Conclui que, para ele, o arrabalde não é a Amazonia, mas sim o resto do Brasil. A região mais rica em biodiversidade – “vida” – do planeta não é compreendida dentro do seu próprio País.
Essa “não-compreensão” do País “gigante pela própria natureza” é que faz com que uma parte de nós se vista de verde e amarelo, como se fosse um salvo conduto, e se arvore no direito de subir a mesma rampa do Planalto – percorrida dias antes pelo cacique Raoni – para destruir tudo que encontrasse pela frente. O que me consola é crer que, para curar, é preciso purgar.
Em que pesem os desafios da economia global e do Brasil, 2023 começa anunciando que está vindo um novo tempo, no qual temos muito a discutir sobre o que realmente é a criação de valor, o que é de fato retorno de investimentos, e o que são os indicadores reais do desenvolvimento.
A foto de Fernando e Marina juntos em Davos, para mim, significa a esperança de que o “arrabalde” pode restaurar o “paraíso”.
Fersen Lambranho é chairman da GP Investimentos e da G2D Investments.